Rafael estava todo sujo, molhado e com as roupas rasgadas. A menina havia enganado ele direitinho. Ela pediu carona e ele não pode resistir àquelas feições tão singelas. Agora Rafael se culpava por ter sido superficial e julgado o caráter da moça pela sua aparência. Mas como ele poderia imaginar que aquela menina de pouco mais de dezoito anos, pele alva, cabelos loiros, longos e bem tratados, jogados pra trás e seguros com um arco, vestido branco florido em cima dos joelhos, de mangas bufantes, largo e amarrado na cintura, pudesse ser uma assaltante. Como ele poderia adivinhar que detrás daquele arbusto iriam surgir seus dois comparsas, estes sim com crachás de ‘Assaltante Profissional’. E era assim, relembrando cada momento do assalto, desde o instante que parou para a falsa mocinha, a sensação da arma dura e fria em sua têmpora, o modo bruto como fora arrancado de dentro do carro, a surra que levou como ameaça para não dar queixa, as humilhações e o abandono naquela estrada vazia. Agora Rafael, naquele estado, apenas com os documentos, sem nenhum dinheiro, cartão ou celular – os bandidos deveriam estar usando tudo naquele exato momento – vagava pela estrada, mancando, aguardando que uma boa alma parasse para ajudá-lo. Mas o pior de tudo mesmo, o que realmente ia complicar, era que Rafael era mudo e parcialmente surdo. Então até alguém parar para escutar, e entender, o que havia se passado com ele, poderia demorar um bocadinho.
Marília estava saindo de sua sessão de análise em grupo semanal. Já fazia um ano que ela frequentava aquele grupo e aquele dia especialmente havia sido muito duro para ela, pois seu terapeuta estava exigindo alguns avanços que Marília estava protelando. Mas ela não concordava com seu terapeuta, ela não estava desenvolvendo agorafobia, senão ela nunca iria conseguir assistir àquelas sessões naquele lugar tão longe de tudo, e ainda por cima em grupo.
De qualquer forma, depois do esporro em público que ela havia recebido, agora era questão de honra. Sua missão para aquela semana era começar uma conversa do nada com um completo estranho. Marília estava fazendo planos de ir ao shopping naquele mesmo dia e fazer seu dever de casa. Mas só de pensar, Marília já estava suando frio. Sua mente dizia que sim, seu corpo dizia que não. E nesse embate Marília seguia pela estrada um pouco alheia à estrada, no seu caminho de volta pra casa.
Rafael já tinha caminhado alguns quilômetros pela estrada, e para culminar sua falta de sorte, começava a chover. E o pior era que, por causa de sua surdez parcial, ele tinha que caminhar de costas para vigiar os carros e pedir carona.
Marília já tinha saído a vinte minutos da terapia, e quanto mais pensava em sua tarefa, mais nervosa ficava. O suor era tanto que já começava a nublar sua visão. Marília se abaixou para pegar um lenço de papel no porta-luvas, mas pelo breve momento que tirou os olhos da estrada sem querer passou por cima de algum volume que sacudiu o carro e a obrigou a parar no acostamento, para verificar se tinha havido algum dano.
Rafael continuava em sua andança à ré quando de repente ele avistou um carro que vinha a velocidade moderada, dirigido por uma mulher baixa, morena, na faixa dos seus trinta. Rafael começou a fazer sinal pedindo carona. A mulher parecia estar com problemas nas vistas, pois estava com o corpo totalmente inclinado para frente e os olhos apertados numa postura típica de quem busca enxergar melhor a pista, o que era muito estranho porque era apenas onze horas da manhã, e o dia, apesar da chuva, estava claro. O carro se aproximou e de repente a mulher sumiu dentro dele. Rafael continuou fazendo o sinal, aguardando a mulher levantar a cabeça novamente, mas ao invés disso, o carro todo veio em sua direção. Rafael correu para a lateral, para fora do acostamento da pista, mas o carro chegou a pegar a lateral do seu corpo, jogando-o no chão.
Marília parou e desceu do carro. Olhou a frente, para as laterais e finalmente reparou que o retrovisor do lado do carona estava quebrado. Foi quando viu também o corpo de um homem jogado a alguns metros para dentro do acostamento. Marília soltou um grito e levou a mão à cabeça, desesperada achando que havia matado um pedestre.
Rafael custou a se levantar até que ouviu o grito da mulher. Fez um esforço e levantou ou rosto. Viu a motorista do carro em pé ao lado dele há alguns metros de distância, com as mãos sobre os olhos. Não pode deixar de pensar que aquele deveria ser o dia dele pagar todos os seus pecados. Rafael sentou-se lentamente e limpou o rosto, estava se preparando para levantar quando sentiu o corpo inteiro sendo içado com um solavanco.
Marília, quando viu Rafael, entrou em pânico. Primeiro pensou que o havia matado, mas ele havia levantado a cabeça, então, menos mal. Mas como ele não se mexia, pensou que talvez o tivesse deixado paraplégico, mas o rapaz se sentou. Ainda bem. Algo gritou dentro dela – MEXA-SE! E Marília partiu para o lado do rapaz. Antes mesmo que ele falasse qualquer coisa ela se abaixou e no calor do pânico içou em um só movimento o rapaz do chão e começou a levá-lo para o carro.
Rafael só entendeu o que estava acontecendo quando já estava na porta do carro, sendo atirado para o banco do carona. O corpo todo doía, mas aparentemente nada estava quebrado. Ele estava mais sujo ainda, mas pelo menos havia arrumado uma carona. Abriu o casaco e arrancou um pedaço de sua camiseta, que apesar de encharcada, pelo menos estava limpa. Com esse trapo começou a limpar o rosto.
Marília deu a volta correndo e entrou no carro pedindo desculpas desesperadamente. Ligou e saiu com o carro, explicando que estava tentando limpar os óculos quando perdeu o controle do carro. Como o rapaz estava enxugando o rosto, apenas soltou uns grunhidos ininteligíveis, que só serviram para que Marília continuasse tagarelando sem parar.
Rafael ainda estava limpando o rosto quando Marília entrou no carro falando alto e desordenadamente. Ia ser difícil fazê-la entender qualquer coisa se ela continuasse naquele estado de excitação, por isso Rafael nem tentou explicar nada. Tirou o pano do rosto e apenas sorriu em consentimento para tudo o que Marília dizia. Ela aos poucos foi diminuindo a velocidade da fala e passou a olhar mais para ele, menos para a estrada.
Marília perguntou se estava tudo bem, Rafael sorriu em assentimento. Marília perguntou se ele estava pedindo carona, e ele deu o mesmo sorriso. De repente, Marília se lembrou da tarefa e ficou feliz com a oportunidade de engatar em uma conversa, mesmo que fosse apologética, com um estranho. Mas ao mesmo tempo seu nervosismo voltou com força e Marília começou a suar frio pela eminência de ter que se relacionar com alguém. Sacudiu a cabeça e ficou repetindo mentalmente as palavras do terapeuta – ‘Confiar com segurança. Não julgar pela aparência’. Foi quando Marília passou a perceber as roupas sujas e rasgadas de Rafael. Lentamente, o pânico foi tomando o lugar da culpa. Rafael estava maltrapilho, sujo, com os cabelos completamente desarrumados. Parecia um maníaco. Marília olhou para frente e ficou muda.
Rafael começou a reparar na moça e no carro. Tudo muito arrumadinho e limpo, tanto que parecia até de brinquedo. Logo pensou: de duas uma, ou é muito caprichosa ou tem TOC. Começou a pensar em como faria para explicá-la quem ele era, o que havia acontecido com suas roupas e para onde ele precisava ir. De repente ela havia parado de falar e ele achou que aquele era o momento. Como ela olhava para frente, ele tocou levemente seu braço direito para lhe chamar a atenção.
Marília olhava com o canto do olho tudo o que Rafael fazia. Reparou que ele estava estudando o carro e a ela, olhando para tudo com muito cuidado. Seu coração disparou. Agarrou com força o volante e acelerou. Estava tão compenetrada na estrada e na oração, que quando sentiu a mão de Rafael em seu braço, deu um grito e virou com força o volante, quase capotando. Marília gritou de susto e ficou mais assustada ao perceber que Rafael nem havia gritado de susto, o que comprovava que ele devia ser um psicopata. Ela resolveu conversar, pois, se conseguisse torná-lo seu amigo, ele não iria matá-la. Marília perguntou qual era o nome de Rafael.
Rafael levou um susto tão grande com a reação de Marília que ficou paralisado. Era muito estresse para uma noite só. Ele não olhou mais para o lado, tentando se recuperar do susto. De repente a louca da motorista o olhou com um sorriso amarelo e perguntou seu nome. Rafael olhou para Marília por alguns instantes, meio que tentando decidir se ela era psicótica ou retardada. Ele respirou fundo e respondeu pausadamente seu nome, como havia aprendido na escola de surdos-mudos. Ra-fa-el.
Marília teve a certeza que Rafael não era normal quando o ouviu pronunciar seu próprio nome com a voz arrastada e pausada. Parecia bêbado, parecia lesado, parecia a voz de um assassino em série. Marília acelerou mais. A chuva havia aumentado. Os óculos de Marília agora estavam completamente embaçados, assim como o para-brisa dianteiro todo. Mas não importava, porque Marília olhava para frente, dirigindo no automático, nem reparando direito na estrada.
Rafael começou a ficar desconfortável com a velocidade que Marília já havia atingido. Ele nunca vira uma mulher dirigir tão rápido. Nem tão mal. Marília olhava para frente com muita determinação, mas não tinha como ela estar vendo bem a estrada, pois o vidro estava completamente embaçado. Eles estavam em uma reta e lá no fundo da estrada a frente, Rafael viu duas pequenas luzes.
Marília nem estava preocupada com a estrada, estava mesmo era prestando atenção com o canto do olho em todos os movimentos de Rafael. Ele tinha o rosto vidrado na frente e agarrava o banco com força.
Rafael reparava nas pequenas luzes se aproximando, e Marília seguia acelerando. As pequenas luzes se aproximaram mais ainda e se transformaram em dois faróis na contramão, e nem sinal da Marília esboçar um desvio, ela parecia em transe. Rafael olhou desesperadamente para Marília, com os olhos arregalados. O caminhão se aproximava e Marília não parecia se importar.
Marília estava no ápice do seu pânico, completamente paralisada, sentindo Rafael olhar para ela com olhos loucos, mexendo a cabeça sem parar, para ela e para frente, para ela e para frente. Marília nem sequer reparou no caminhão que se aproximava pela contramão. De repente, pelo canto do olho, viu que Rafael se atirava para cima dela. Marília soltou um gritou e tapou o rosto.
Rafael não estava acreditando, a mulher era uma suicida. Rafael não pensou duas vezes, se jogou para tomar o volante e tentar tirar o carro da colisão certeira. E a louca, depois de gritar histericamente e tapar os olhos, se jogou contra ele, batendo nele com as duas mãos e gritando e pedindo pela vida.
Marília fechou os olhos e se jogou, sem se importar como iria ficar aquela disputa desigual entre uma mulher de um metro e sessenta e um psicopata assassino em série. Ela lutava por sua vida, e começou a bater em Rafael sem preocupações de como iria ficar a direção do carro e como eles iriam acabar.
Rafael tentava controlar o carro e segurar Marília, mas as duas tarefas estavam impossíveis. Felizmente o caminhão que vinha na contramão desviou e Rafael conseguiu jogar o carro no acostamento. Não pensou duas vezes na hora que o carro parou, abriu com um chute a porta do carro e saiu correndo o mais rápido que conseguia, para longe de Marília.
Marília ainda estava assustada e chorando quando o carro parou e Rafael saiu correndo. Mas ficou muito feliz em ter conseguido assustar um psicopata assassino em série. Voltou a se arrumar, limpou os olhos, limpou o para-brisa e saiu com o carro. Estava orgulhosa de si mesmo, tão orgulhosa que ao invés de ficar traumatizada, estava se sentindo forte, corajosa e pronta para outra. Ligou o carro e seguiu viagem. Estava se sentindo tão bem, que nem titubeou, parou para dar carona quando avistou mais a frente, uma menina de pouco mais de dezoito anos, pele alva, cabelos loiros, longos e bem tratados, jogados pra trás e seguros com um arco, vestido branco florido em cima dos joelhos, de mangas bufantes, largo e amarrado na cintura. Nem titubeou! Decidiu parar para dar carona. Estava seguindo as ordens de seu terapeuta, iria confiar com segurança.
Rafael só parou de correr quando chegou a sua casa, trinta quilômetros depois.
Comentários