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A Fé Que Não Sabia Que Era Fé

Ele tinha pais. Quer dizer, sabia de onde vinha, sabia quem tinha sido seu pai, sabia onde estava sua mãe, mas não tinha um lar, vivia alternando moradia entre o orfanato e a rua. Fazia o que precisava para sobreviver, mas era de bom coração, boa índole, não gostava de machucar, nem tirar sangue dos outros, e só roubava se fosse para comer. Vivia assim desde os seus quatro anos, quando foi deixado no orfanato pela mãe, e agora aos sete já havia cansado de ouvir que sua vida seria essa até a maioridade, pois já não tinha mais chances de ser adotado, estava velho. Acontece que algo no peito dele não o deixava acreditar, e por isso, sempre voltava para o orfanato, quando o tempo começava a esfriar, na esperança que talvez alguém viesse buscá-lo. Naquele verão, já de novo nas ruas, encontrou uma turma que gostava de dormir nas escadarias da igreja da praça e que deixou ele se juntar a eles. Disseram a ele que as velhinhas que gostavam de rezar todos os dias eram as melhores para dar esmolas, e que o ponto era bom, mas ele ia ter que se provar, ia ter que pegar esmola a semana toda e dividir com eles, se ele quisesse continuar ali com eles, o que para ele foi moleza, pelo menos não estavam pedindo para roubar, ele detestava roubar. E no dia seguinte, começou a pedir esmolas. Como era mirradinho, franzino, logo conquistou a compaixão das senhoras piedosas, mas uma em especial se aproximou mais dele, e ao invés da esmola, perguntou se ele não queria ganhar o dinheiro com um trabalho honesto. Ele adorou a novidade, iria trabalhar. E o trabalho consistia apenas em carregar as bolsas de compras para ela, que nem eram tantas. Assim, saíram da igreja e foram ao mercado, e do mercado para a casa dela, e foi assim durante toda uma semana. Depois que ele deixava as bolsas, ganhava uma boa gorjeta e ia de volta para a praça dividir com os colegas. Na semana seguinte, a senhora impôs uma nova condição, ele teria que assistir à missa com ela. Na outra semana, depois de conquistada a confiança, ele já estava até almoçando na casa dela. E ela havia se afeiçoado profundamente da criança que apesar de todos os infortúnios e chances contra, tinha o coração e índole bons. Até que o verão acabou e ele sumiu, voltou para o orfanato e não contou para a amiga de missa-compras-almoço. Ela procurou por ele por toda aquela semana até que descobriu para qual orfanato ele tinha ido. A cidade era pequena, não foi tão difícil, ela o encontrou e tomou a decisão, iria adotá-lo. Mais tarde, ele já instalado na casa dela, ajudando aos amigos da rua, indo à escola, vestido, alimentado, mais parrudo e mais saudável, contou a sua nova mãe que sabia, não sabia como, mas sabia, que se fosse bom, e não quisesse o mal, seria recompensado, e que a única coisa que desejava mais que tudo, desde que havia sido deixado no orfanato, era ser filho de alguém, ter um lar e uma família. A sua nova mãe lhe explicou que o que ele tinha era fé, apesar de nem conhecer a palavra, nem qualquer religião.

A Fé da Inocência

Ela estava com cinco anos e já conhecia a dor do fim do amor. Seus pais brigavam todas as noites, e todas as noites ela adormecia rezando para o anjinho da guarda do quadrinho pendurado na parede da cabeceira da sua cama, para que o papai e a mamãe não deixassem de ser o papai e a mamãe dela. É que ela entendia que se eles não ficassem juntos, ela teria que ir para um orfanato, pois não compreendia como era viver sem um deles. Esta foi a primeira preocupação que ela aprendeu a ter. Um belo dia, na aula, a professora pediu que desenhassem o presente que queriam ganhar do Papai Noel naquele Natal. Ao fim da aula ela foi perguntar como o Papai Noel iria ficar sabendo do desenho dela e a professora respondeu que se ela orasse ao lado do papai ou da mamãe todas as noites, o Papai Noel iria ouvir e ela iria ganhar o presente, isso, é claro, se ela fosse uma boa menina durante todo o ano. E foi assim que ela salvou o casamento dos pais, pois naquele dia, e durante todo aquele mês, ela insistiu que pelo menos um dos dois, e quando possível os dois, estivessem com ela antes de dormir, para pedir ao Papai Noel que a sua família não deixasse de existir. No desenho estavam representados o pai, a mãe, ela, o anjinho e sua boneca favorita, todos dentro de sua casa e sua casa dentro de um coração. Sua inocência já era fé, ainda que ela ainda não tivesse aprendido o significado da palavra. E sua fé inocente ajudou a reaproximar seus pais. Naquele Natal, além da família reunida, ela ganhou a notícia de que também ganharia um irmãozinho.

Fé Polígama

Não há outra maneira para descrever sua crença, sua capacidade em acreditar em qualquer coisa exotérica que se apresentasse, chegava ser absurda. Acreditava em todos os santos, rezava na catedral, participava de roda de oração com os evangélicos do bairro, freqüentava as reuniões públicas do centro espírita para tomar passe, fazia despachos na praia, já tinha estudado a cabala, fazia anualmente seu mapa astral e agora por último estava interessada em entender o Alcorão e o Islamismo. Ocupava seus dias e seu tempo com tanto misticismo e religião, que sobrava pouco para o pragmatismo e a ação. Como conseqüência, muitas coisas erradas aconteciam em sua vida, e ela sem perceber que era mais por culpa de sua distração, que revolta dos deuses, se apegava mais ainda aos cultos e orações que fossem necessários para tirá-la das situações complicadas. E escolhia a vertente conforme a conveniência. No caso de saúde, apelava para os desobsessores espirituais; no caso de proteção, o santo do dia; no caso de impasses, a futurologia da umbanda ou da cabala; ou então fazia um combo, uma espécie de pacote que fechasse os quatro lados das possibilidades e garantisse o sucesso almejado. Era uma fé enorme, mas espalhada, dissipada, portanto, acabava sendo uma fé fraca, indecisa e reticente, do tipo vai e volta. Até que um dia se viu diante de um assalto, e para piorar, foi escolhida como refém para proteger um dos assaltantes durante as negociações com a polícia. Diante da situação, não se lembrou de nenhum santo, nenhum Deus, nenhuma religião. Apelou para sua psicologia, adormecida desde a formatura, e com muito diálogo, conseguiu acalmar tanto o ladrão quanto o policial que ameaça entrar de qualquer jeito no banco para acabar com o assalto. Conseguiu sair viva da situação, levou um tiro na boca, mas saiu viva. A única coisa que morreu foi sua crença diversificada. Hoje, acredita mais nela mesma que em qualquer outra coisa, só não perdeu o hábito de se benzer todas as vezes que passa por uma igreja.

O Ateu

Era cético. Não acreditava em magia, superstição, deus, deuses, deusas, nem mesmo em intuição. O único pedestal insólito que se permitia adorar era o da racionalidade. Acreditava piamente – com perdão do trocadilho religioso – que éramos todos frutos de um incidente molecular. Portanto, era ateu, e dos mais ferrenhos, fazia questão de desafiar a crença dos outros e conclamá-los a provar a existência da deidade que fosse que acreditavam reger suas vidas. Nem por isso era uma pessoa desagradável, era muito simpático, divertido e conseguia expressar sua falta de crença, ou sua absoluta certeza na matéria pura e simples de maneira bem humorada e criativa. Mas adoeceu, seriamente. E quando estava nas últimas, esperando os médicos e a vida desistir dele, eis que seu vizinho de quarto, um rapaz de dezessete anos, também na mesma situação, piorou de estado clínico e havia passado a noite toda chorando pedindo para morrer, pois já não agüentava mais a dor da corrosão que a doença alastrava em suas entranhas. O Ateu, comovido pela vida tão tenra que se esvaía, convidou o jovem a se ajoelhar e a rezar com ele, nem que fosse pelo milagre da morte. No dia seguinte, o jovem acordou, não vou dizer curado, mas acordou melhor. O vizinho estava dormindo com uma expressão de paz. A mãe do rapaz, ao chegar e perceber sua melhora significativa se assustou. O rapaz, percebendo sua surpresa, apenas apontou com a cabeça para o leito ao lado e disse que a fé do outro o havia feito dormir bem a noite toda e acordar melhor. A mãe aguardou que o Ateu acordasse, para agradecer, mas ele já estava morto, serenamente. Passou sua vida toda defendendo a inexistência do divino, mas ficou famoso no hospital como um dos homens de maior fé que já havia passado por aquele centro de tratamento. Alguns ainda chegam ao ponto de considerá-lo até um santo milagroso que tem atuado no hospital desde então.

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