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O Valor do Silêncio

Finalmente, lado a lado. Ele e ela. Lado a lado. Há tanto tempo que ela esperava por essa oportunidade. Queria tanto lhe dizer, havia tanto o que dizer. Sua cabeça fervilhava. Aquela era a hora. Aquele era o momento certo. Ela o olhava, e ele, impassível, indecifrável, focado e concentrado no seu caminho à frente. Não demonstrava nenhum sentimento. Também não demonstrava nenhum descontentamento, então, podia estar apenas relaxado, e aí seria melhor ainda.

Ele respirava como se nem respirasse, não era possível perceber nem o movimento do peito inflando e desinflando com o ar. Ela? Já arfava, de ansiedade. Mas seguiam caminhando. Ela disse cinco ou seis frases soltas, todas relacionadas ao tempo e ao ambiente, pura tentativa de estabelecer um diálogo. Mas eram todas frases retóricas, ele assentia com serenidade e sem desviar o olhar do caminho, não dando corda ao assunto despropositado.

Finalmente chegaram ao parque, por onde iriam caminhar, juntos, finalmente, lado a lado, depois de tanto tempo perdidos na rotina do dia a dia, mal se encontrando à noite. Era como se ela finalmente tivesse conseguido agendar uma reunião com o diretor da sua empresa, e era só entre eles dois, mais ninguém. E a reunião, ou caminhada, iria durar pelo menos noventa minutos. Era um luxo de tempo que ela não podia perder.

O sol estava forte, mas não era nem sombra do sol de um mês atrás. A cidade emanava um clima civilizado, de brisa calma refrescante, bem propício a uma conversa importante. Mas quando eles finalmente adentraram o parque, a emoção, o visual, a beleza do lugar, a temperatura perfeita, aquele dia, e ele ali, ao lado dela, apesar de tudo, ainda ao lado dela...

Ela se sentiu invadida por uma sensação estranha de saciedade, de salvação, como se estivesse no paraíso e nada mais fizesse falta, nem a reforma na casa, nem as tarefas pendentes, os projetos, as entregas, tudo estava resolvido, pois tudo iria se resolver, era só questão de tempo.

Ela ainda abriu a boca mais uma vez para tentar falar e ele finalmente olhou para ela. E sorriu, provavelmente invadido pela mesma sensação de gratidão que dela emanava. Ela parou nos olhos dele, se lembrou da casa, dos filhos, da sua vida de casados, das contas, dos pais, dos sogros. Depois, num movimento inverso, foi se esquecendo de tudo e só se concentrando naqueles dois olhos, os mesmos olhos, de dez anos atrás, e tudo foi se esvaindo da mente dela, tudo o que ela tinha ensaiado para falar, tudo não era nada, só aqueles dois olhos significavam o importante, o realmente importante, o início daquela vida em comum, o motivo daqueles dois serem um.

Ela olhou novamente, para ele, a sua volta, para si mesmo, para o que viria a frente, e parou de caminhar, parou o caminhar dele, se virou de frente para ele, não para lhe dizer o que já não queria mais se lembrar, não se importando mais com a mesquinhez da rotina do casamento, mas se esforçando para reter na mente o que de fato importava para aquela união. E assim, num átimo, por causa de uma brisa, um cenário e uma inspiração, abriu mão dos fatos e resolveu celebrar o fogo fátuo de seus corações. Pegou-lhe pelo rosto, aproximou-o bem do seu e disse o que realmente importava: ‘Eu amo você!’

E caminharam por mais de uma hora, em silêncio, de coração e mãos unidas, travando em silêncio a conversa mais frutífera que tiveram em anos.

Falar às vezes não diz nada. Calar pode consentir muito. E esse é o valor do silêncio: não dizer o que não interessa, assentir com o que realmente importa. 

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