Quando eu era menina, como todas as outras meninas, sonhava. Mas eu sonhava em ser diferente. Isso talvez me diferenciasse, mas enfim, eu também sonhava. E os sonhos, apesar de diferentes, partiam de um ponto comum: o que eu ia ser quando crescer! Tudo bem que, devido à minha genética, meu pai dizia que eu não cresceria muito, mas isso era só para me irritar, o que invariavelmente acontecia. De qualquer forma, insistentemente, eu seguia sonhando, e crescia. Sonhava que seria contorcionista de circo ou a versão feminina do Tarzan. Não a chata da Jane. Queria pertencer à floresta! Ainda com a intenção de me matar de raiva, meu pai dizia que eu não precisava me preocupar, pois que eu já era a cara do Mogli. Graças a Deus eu tinha minha mãe por perto para me defender nessas horas e me restituir a autoestima.
Teve uma época, por volta dos seis anos, que me encantei com um livro de capa de couro verde, grande, grosso e com letras miudinhas, que tínhamos em nossa estante, e desde então decidi que queria ser a Dona Quixote. Adorava a figura do cavaleiro magro e alto em cima do cavalo, portanto queria ser como ele. Nunca consegui passar da primeira página do livro, mas dormia com ele todas as noites, durante pelo menos um ano. Eu não gostava de bonecas, gostava de teatrinho. Não sonhava em me casar, sonhava em ser a companheira do Sinbad em suas inúmeras aventuras, até porque eu achava beijos nojentos naquela idade. Eu não gostava de ver a Branca de Neve, a Gata Borralheira e a Rapunzel naquela posição tão passiva, sofrendo horrores a historinha inteira para só no finalzinho aparecer aquele príncipe não sei de onde, todo empoado e delicado, protótipo do homem metrossexual, dando um beijinho sem sal e se tornando o grande herói da história. Nâo! Não eu.
O meu príncipe teria que ser diferente. Algo mais realístico e mais viril. Tudo bem! Eu também não sabia o que era viril aos cinco, seis anos de idade, mas sabia que queria um herói diferente e que eu queria ser herói também. Então cresci, cheguei à adolescência, tudo ficou confuso e os ideais da infância foram guardados na dispensa junto com os brinquedos velhos. Comecei a escrever poemas sofridos, tristes, tão tristes que até hoje não sei de onde tirava inspiração para eles, porque eu não vivia aquilo. Acho que eram os hormônios. Tudo era muito intenso, tão intenso que eu tinha certeza absoluta que eu só iria viver até os dezoito anos.
Mais ou menos estava certa, pois com dezoito anos fui morar em uma república com mais três amigas, longe dos pais, e foi a partir daí que entendi a sensação de morte que eu tinha durante meus tenebrosos cinco anos de adolescência, eu comecei a viver de verdade a partir dos dezoito anos e quem morreu foi a inocência. Apesar de toda liberdade e liberalidade, a juventude foi uma sucessão de decepções e sofrimento. Foi a época dos sapos e dos lobos maus. De melhores amigas tornando-se rivais, do amor da infância acabando, da diferença social interpondo distâncias onde antes não parecia existir. Mas nem tudo era ruim, pois que foi a época mais divertida, veloz, emocionante, reveladora e constituinte de quem sou hoje. Nessa época, tampouco queria príncipes, muito menos ser princesa, os sonhos medievais tinham ficados todos na adolescência. Era a época de Jack Kerouak, do modernismo, da quebra de tradições, de caminhar sozinha e ser bastante para mim mesma.
Passado o frisson da juventude, com todos os segredos descobertos, todas as regras quebradas, fui aos poucos juntando os cacos e em um mosaico construindo o que hoje ouso chamar de personalidade. Está mais para bagagem! Personalidade é muito estática, muito definitiva. O melhor de tanta mudança, tanta experiência vivida, é poder tirar de tudo um pouco, do todo o melhor, e se dar a liberdade de em um dia voltar a ser criança, sonhar com heróis e brincar de boneca; no outro bancar a adolescente, ser teimosa e inconseqüente; e nunca, nem se chegar aos cem anos de idade, deixar a jovem destemida, indômita e apaixonada morrer dentro de mim.
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