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Grampos


No fundo da gaveta, um grampo!

Como migalhas de pão indicando o caminho de casa, os grampos são uma pista de sua passagem, como sempre silenciosa, sem distúrbios, alardes ou propaganda. 

Se me dissessem talvez não fosse para mim possível conceber uma existência assim, silenciosa. É como um sopro, um vento que só sopra se preciso, se chamado, trazendo alento, um frescor, um abraço, um braço de ajuda, às vezes dois, ou apenas uma comida, quando não se tem cabeça nem para providenciar o alimento necessário. Assim talvez como são os anjos: invisível, silenciosa, imprescindível. 

E em cada grampo encontrado me lembro dela, de sua voz serena, aconselhando manso, não querendo invadir, sua presença aconchegante e sempre suave. E a cada grampo espalhado pela casa que encontro, único indício material de sua passagem, uma lembrança diferente, a de um carinho, de um momento de paciência, da ajuda desinteressada, da dedicação. 

E em cada grampo sinto o cheiro de banho fresco, o calor das mãos macias, da comida quente regeneradora, do abraço reconfortante, das alegrias da infância. Encontro um grampo na pia do banheiro, um embaixo do travesseiro, outros na área perto da máquina de lavar roupas e diversos outros indicando sua atividade despercebida, que me fazem finalmente perceber o quanto estava integrada à rotina da casa, o tanto que preenchia o meu dia a dia, e eu nem via. 

Os grampos seguram os cabelos cheios e rebeldes de uma alma mansa e delicada, que por amor e dedicação, sem arroubos narcisísticos de ser marcante, tornou possível e viável outra existência que a ela deve tudo: vida, instinto e sensibilidade. 

E por gratidão somente rogo que eu tenha a mesma capacidade de ser para os meus descendentes como ela foi para mim, como os grampos de cabelo que me lembram ela: simples, útil, quase invisível, mas irrevogavelmente necessária.  

(Homenagem a quem me fez, me faz, me constrói, me humaniza, desde sempre, todos os dias.)

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