Pular para o conteúdo principal

Separação em Comunhão Total

O amor não acabara, mas a vida havia imposto uma distância intransponível entre os dois. Porque as perspectivas eram sombrias, ele decidiu ignorar o coração e ouvir a razão. Diante de uma lista de prós e contras, concluiu que apesar de serem almas complementares teriam que se separar. Foi durante um jantar, no restaurante preterido dela, que foi feita a leitura da lista e da decisão tomada. Ela tomou em um gole o vinho fraco, não disse uma só palavra, além da aquiescência, pediu para partir e fugiu da cena do crime.

A distância foi dolorosa. Suas vidas já estavam muito atreladas quando se separaram, retomar a individualidade estava sendo mais duro que imaginara. Para não correr o risco de ferir sua dignidade apagou todos os telefones, endereços, redes sociais, e outros dispositivos que pudessem facilitar a busca desesperada por informações. Foi uma atitude suicida, pois nenhuma notícia tornava a distância e a separação ainda mais derradeira e abismal. Mas precisava ser forte e manter pelo menos o orgulho, afinal, a decisão partira dele e ela não era mulher de implorar. Sempre o obedecera e respeitara em todas as suas decisões, manteria-se coerente até o final.


Para acelerar o processo de esquecimento, se auto-imputou um tratamento radical e intensivo. Lia, relia, ouvia e re-ouvia todas as cartas, cartões, mensagens de email, mensagens de celular, músicas e gravações que haviam compartilhado, buscando uma vacina, uma forma de se impregnar e enfastiar, pensando que assim enjoaria e não sentiria mais tanta falta da presença dele. Ele, por sua vez, buscava esquecê-la espalhando a lembrança dela em outras mulheres, vivendo a noite e dormindo os dias, embriagando-se para não ter muitos momentos de lucidez e fraqueza, e manter sua decisão, que racionalmente era a mais sensata.

O único resultado que alcançavam era a comparação e a lembrança nítida de tudo o que cada um representava para o outro. Ela tentava salvar pelo menos as músicas, não queria se privar de nenhuma, numa tentativa de não deixar que ele tirasse dela essa alegria, mas as letras e as memórias que cada canção trazia despelavam seu coração a cada nota. Ele via em cada boca o seu sorriso, em cada pele a sua suavidade, nos cabelos a falta do seu cheiro inconfundível, e nos beijos o gosto incomparável e único. Os motivos começaram a ficar turvos e incompreensíveis. Já não se lembrava mais porque haviam se separado, enquanto ela se resignava a continuar sentindo aquela parte do seu corpo, da sua alma, amputada a sua revelia, como um membro ausente que continuava a doer.

A razão se esmaeceu, o coração reverberou, voltaram. Se estão juntos hoje é apenas circunstancial. O amor pode ou não dar certo, cada um tem sua própria experiência, e quem souber valorizar, descobrirá que é a experiência de amar que vale a pena, o resto é conto de fadas. No caso deles, a separação serviu para afastar a distância antes intransponível, estabelecer as prioridades e uni-los em comunhão total de memórias e músicas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Autora responde a ela mesma!

Ah, doce época da inocência! Acabo de retomar meu blog, que estava suspenso desde final de 2012 e li o último texto que postei. Tudo era muito diferente há três anos. Eu era diferente. O Brasil era diferente. O verão era diferente. Naquela época eu estava incomodada com o fato de ser muito pacífica, de não me revoltar, de curtir tanto o Rio, passear no aterro, tomar água de coco e relaxar, simplesmente relaxar. Era Outubro de 2012, minha primogênita estava apenas com nove meses, era um bebê angelical em todos os sentidos, não dava trabalho, era sorridente, um sonho de criança, tão desejada e tão amada. Eu ainda estava amamentando, cheia de hormônios, ainda estava feliz da vida porque não estava mais trabalhando, apenas em casa, cuidando da minha filha, da minha casa, do meu marido, minhas cachorrinhas, meu gato, meu sonho de felicidade. O Rio estava implantando as UPPS, tínhamos a sensação de mais segurança, esperávamos a Copa, ainda com um misto de esperança e incredulidade, ...

Dois Pontos de Vista

Rafael estava todo sujo, molhado e com as roupas rasgadas. A menina havia enganado ele direitinho. Ela pediu carona e ele não pode resistir àquelas feições tão singelas. Agora Rafael se culpava por ter sido superficial e julgado o caráter da moça pela sua aparência. Mas como ele poderia imaginar que aquela menina de pouco mais de dezoito anos, pele alva, cabelos loiros, longos e bem tratados, jogados pra trás e seguros com um arco, vestido branco florido em cima dos joelhos, de mangas bufantes, largo e amarrado na cintura, pudesse ser uma assaltante. Como ele poderia adivinhar que detrás daquele arbusto iriam surgir seus dois comparsas, estes sim com crachás de ‘Assaltante Profissional’. E era assim, relembrando cada momento do assalto, desde o instante que parou para a falsa mocinha, a sensação da arma dura e fria em sua têmpora, o modo bruto como fora arrancado de dentro do carro, a surra que levou como ameaça para não dar queixa, as humilhações e o abandono naquela estrada vazia. ...
E eis que nasceu, meu primeiro romance, disponível na Amazon, em formato eletrônico. São - Sem Memória no Carnaval do Rio Espero que se divirtam e se apaixonem. Não tenho maiores pretensões que essas.