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Luxo e Classe

Alice acordou, fez um copo de café na chaleira amassada e tomou com um cigarro. Arrumou-se atrasada e desceu correndo acelerando de ansiedade enquanto terminava de se maquiar no espelho do elevador. O primeiro passo na calçada foi o toque de despertar definitivo: mais um dia, nada novo.

Marcelo foi despertado pelo serviço de quarto do hotel. Com o controle remoto abriu suavemente as cortinas para a luz do dia entrar. Se espreguiçou demoradamente depois pegou o telefone para encomendar o café no quarto. Seguiu para o banheiro e só saiu vinte minutos depois, no mesmo momento em que seu café chegava. Reclamou rispidamente com o garçom que não haviam mandado seu jornal e não se lembrou de agradecer por mais nada.

Alice se espreitou entre os passageiros do ônibus lotado para conseguir descer em seu ponto. Conseguira chegar na hora, mas ainda precisava trocar de roupa e colocar o uniforme. Retocou a maquiagem, calçou o escarpin e compareceu à recepção com três minutos de atraso. Seu chefe apenas a olhou de cima para baixo, sem reclamar, sem tão pouco dar bom dia. Por sorte, logo chegou um cliente e eles não precisaram se falar. Alice tomou a iniciativa e começou a atender.

Marcelo tomou o café, vestiu-se e desceu para ir trabalhar. Fez uma pequena pausa para reclamar da ausência de seu jornal. O chefe da recepção correu para atendê-lo, em seu modo habitual de puxar o saco dos clientes fixos, e de pronto ofereceu uma edição do jornal enquanto ao mesmo tempo falava atravessado para “D. Alice, certifique-se que isso não aconteça novamente!”. Marcelo jogou o jornal em cima do balcão dizendo que já havia lido (e esquecendo-se de mencionar que levou somente cinco minutos para o jornal estar em seu quarto após a primeira reclamação), depois saiu sem se despedir do chefe da recepção, mas não sem antes olhar de soslaio para a funcionária que ele ainda não havia reparado antes.

Alice voltou a respirar normalmente quando ambos haviam saído de perto dela e foi cuidar de problemas reais. O dia transcorreu normalmente, com todo o agito e pompa de um hotel refinado. Muitos clientes, muitos egos, muitos você sabe quem eu sou, você sabe quem é aquele lá, e o chefe da recepção empoado querendo agradar aos mais importantes, atrapalhando com ordens conflitantes o dia do restante dos funcionários. E Alice preocupada com a prova que teria aquela noite na faculdade, aguardando ansiosamente sua folga de almoço para revisar a matéria.

Marcelo trabalhou a manhã toda intrigado com a funcionária que ele não havia visto antes. Ele estava há um ano morando naquele hotel e nunca havia reparado nela, devia ser nova. Ligou para sua secretária e ordenou que cancelasse todos os compromissos da tarde, pois iria almoçar no hotel. Brigou com seu motorista por ficarem engarrafados e se atrasarem quinze minutos. Entrou apressado pela recepção, ignorando o chefe, e já no quarto encomendou almoço para dois e uma champagne. Depois que o almoço chegou, ligou para a recepção e em tom de comando, exigiu falar com o chefe. Ao chefe exigiu a presença de D. Alice.

Alice ouviu e compreendeu de imediato quando o chefe da recepção, com o telefone ainda em seu ouvido, olhou para ela com olhos arregalados. Poderia ser a mãe dele, Alice sabia que o chefe iria atender ao pedido do ilustre hóspede de qualquer forma. Ela fechou os olhos e pediu intimamente que tivesse forças para sair da cilada eminente, mas não podia simplesmente se recusar. Com a desculpa esfarrapada de que Dr. Marcelo queria novamente o jornal, o chefe pediu que Alice fosse ao quarto entregar.

Marcelo havia preparado o quarto com requintes de romance, a mesa posta, a champanhe gelando no balde, e no prato da convidada um rosa vermelha. Estava certo que conquistaria assim sua mais nova obsessão. Mas como era ansioso e pretensioso, já aguardava de roupão, para economizar tempo. Não queria perder mais que trinta minutos na brincadeira.

Alice bateu timidamente na porta, tremendo de antecipação. Dr. Marcelo já havia adquirido fama no hotel. De dentro ela ouviu a voz comandando que entrasse. Ela abriu a porta e ainda no corredor esticou o braço e falou “seu jornal, Dr. Marcelo”. Ele sorriu e pediu que ela entrasse. Quando Alice estava colocando o jornal sobre a mesa, Marcelo agarrou seu pulso e a convidou para almoçar. Alice explicou que não estava em sua hora de almoço e agradeceu. Marcelo insistiu argumentando que tinha certeza que o chefe da recepção não iria se opor a um desejo dele e que ela ainda estaria trabalhando. A ultima frase agitou com ira as entranhas de Alice, que precisou engolir a bile que invadia com a raiva sua boca. Trincou os dentes e disse um “Não, obrigada” ameaçador.

Marcelo, não acostumado e não paciente com recusas, apertou mais forte o pulso de Alice e tentou forçá-la a se sentar. Alice puxou forte seu braço e desvencilhou-se da garra grosseira. Sem mais uma palavra virou-se para fugir do quarto. Dr. Marcelo agora gritava que era uma ordem que ela ficasse, ou iria garantir que ela fosse mandada embora naquele momento. Alice parou no meio do quarto, estancou. O medo de perder o emprego a paralisou por alguns segundos. Precisava daquele emprego para se sustentar, ajudar aos pais, pagar sua faculdade, enfim, viver. Seu estômago gelou. Dr. Marcelo já estava seguro que sua ameaça surtira efeito e aguardava sentado, sorrindo, que Alice se virasse e voltasse para a mesa de sacrifício.

Alice se virou lentamente, olhou para Dr. Marcelo friamente, começou a caminhar em direção à mesa, parou em frente ao balde com a champanhe, pegou a garrafa, Dr. Marcelo sorriu exultante. Alice colocou a champanhe na mesa e num gesto rápido pegou o balde com o gelo e a água e derrubou inteiro na cabeça do Dr. Marcelo, batendo fortemente com o balde na cabeça dele em seguida, que caiu de costa no chão, atordoado, mas ainda consciente. Alice pegou a champanhe, colocou em baixo do braço e saiu apressada do quarto. Passou pelo chefe, entrou no vestiário, pegou suas coisas, e passou novamente pela recepção. O chefe agora estava na recepção ouvindo os gritos do Dr. Marcelo pelo telefone. Alice deu um sorriso, um tchauzinho e saiu. Precisava se concentrar para a prova daquela noite. Amanhã seria um novo dia. Amanhã iria se preocupar em achar outro emprego.

Luxo não é classe.
Necessidade não é desespero.
São os valores que definem a estirpe de cada um.

Comentários

Muito bom!
Descritiva, faz uma virada interessante, tudo factível, escandaloso como o caso do FMI.
Quando vazam essas sujeiras notamos mesmo o estágio cretino de desenvolvimento humano em que se encontram os supostos controladores do planeta.

como vai vc?

mudei meu blog para http://poetaoperario.blogspot.com/

beijos!

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