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A Dor da Borboleta

A menina um dia acordou e se sentiu diferente. Olhou para as bonecas e não deu bom dia, olhou para o espelho e não se reconheceu. Não era dia de aula, não tinha que levantar, por isso não abriu a porta e ficou na cama tentando decifrar o que estava diferente naquela manhã. Sua cabeça estava confusa, ela tinha vontade de chorar, sentia saudade de algo ou alguém que não sabia bem o quê ou quem. Pensou com raiva no coleguinha da escola que vivia implicando com ela, chamando-a de Air Bag, matando ela de vergonha todos os dias. Pensou com raiva, mas a raiva se dissipou em tristeza e começou a chorar. Não que estivesse com vontade, mas não conseguia controlar.

Resolveu levantar, foi para sua penteadeira e ficou se olhando no espelho. Olhou longamente o rosto refletido, o qual já não compreendia mais, depois resolveu estudar o air bag, que tanto a incomodava. Chorou mais um pouco. Olhou de novo para as bonecas, agora com tristeza, já sentia saudades delas, mas não as via mais com a mesma graça. Ela sabia o que estava acontecendo, sua mãe já havia conversado com ela e explicado, mas ela nunca imaginou que se sentiria tão separada dela mesmo quando acontecesse. Levantou a camisola e olhou a barriga, a púbis com a leve penugem, as coxas que estavam a cada dia mais arredondadas, e pensou, desesperada, por que eu?, se esquecendo que todas as meninas da idade dela estavam passando ou passariam pela mesma transformação. Algumas de suas amigas até ansiavam por isso, mas ela não, adorava sua vida, suas bonecas, suas brincadeiras, e absolutamente odiava os meninos, principalmente o implicante do coleguinha que tinha como principal brincadeira irritá-la todos os dias.

Voltou para a cama e continuou chorando até que sua mãe bateu na porta do quarto chamando para o café. Gritou abafada que não queria comer nada, que queria morrer. A mãe, já preparada para a fase que se aproximava, entrou no quarto sem convite e foi se sentar ao lado dela na cama. Ficou durante alguns minutos só acariciando a cabeça da filha, sem falar nada, tentando acalmá-la com carinho, até que a filha resolveu se virar e finalmente dar ciência da presença da mãe. A primeira frase foi: “eu odeio o Paulinho”. A mãe, há muito ciente que este seria o nome do seu primeiro genro, tentou acalmá-la, de todas as maneiras, conversando sem tentar convencê-la do contrário de nenhuma de suas convicções de pré-adolescente. No final disse para ela continuar no quarto, que ela mandaria um café para ela na cama, e ela não teria que sair até a hora que estivesse se sentindo melhor. Como sempre, como todos os pré-adolescentes, a menina resolveu fazer o contrário. Iria se levantar, tomar um banho porque estava se sentindo muito suada, e iria passear de bicicleta.

Já no banho, continuou chorando, agora com raiva de si mesmo porque não sabia bem porque continuava chorando. Pretendia tomar um banho rápido, mas sua barriga estava doendo de uma forma estranha, e a água quente parecia amenizar a dor. Resolveu sentar-se no chão e deixar a água bater direto na barriga, como se fosse uma massagem. De repente, percebeu um fiozinho de sangue que saía de suas pernas, e por mais que soubesse o que poderia ser, o susto foi maior que o discernimento, gritou. A mãe veio correndo, o pai logo atrás, os dois entraram no banheiro para ver o que tinha acontecido, e quando viram a menina no chão sangrando, também levaram um susto. Mas a mãe logo compreendeu e começou a rir, o que, é lógico, fez a menina voltar a chorar, e o pai corar e sair correndo do banheiro, acalmando os irmãos que esperavam curiosos na porta do banheiro. A mãe fechou a porta, desligou o chuveiro, pegou uma toalha e com ela abraçou a filha, que finalmente, naquele dia, deixava de ser criança, tornando-se uma linda e delicada borboleta.

"... Ó borboleta, pára! Ó mocidade, espera!" (Raimundo Correa) 

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