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Uma Vida em Quatro Parágrafos

Nasceu velho, não porque era enrugado como qualquer outro bebê, mas porque já recém nascido sofria a dor da responsabilidade de estar por sua própria conta. Quando precisou, gritou o mais forte que conseguia com seus pequenos pulmões mal formados para ser ouvido de dentro do latão de lixo onde fora largado. Foi socorrido e levado a um hospital, sua condição batida de bebê abandonado não cativava mais a mídia como dantes, bebês eram abandonados quase que diariamente agora, a notícia era velha, portanto não recebeu nenhum tratamento especial, ficou no hospital somente o tempo necessário para ser levado por uma família provisória, até ser adotado definitivamente.

Cresceu pulando de lar em lar, buscando a adaptabilidade. Sua personalidade forte não aceitava ser forjada por nenhum tipo de educação ou religião, assim era constantemente mudado de família, até que finalmente foi parar em um lar para crianças órfãs, onde finalmente encontrou seus pares e começou sua gangue. No caso dele, a vida foi mesmo a melhor escola, ou pelo menos a única escola da qual ele acatou alguma lição. Demonstrava já aos onze anos a capacidade exímia para o planejamento e execução de pequenos delitos, sempre conseguindo escapar ileso de qualquer castigo. E assim se desenvolveu no maior líder dentro do orfanato, até os funcionários batiam continência para ele. Aos dezoito finalmente foi liberado para ir viver por conta própria. Sem ter para onde ir, foi para a rua. Em menos de um mês já era dono de um barraco na favela, já tinha três companheiros que acatavam suas ordens e já planejava derrubar o dono do morro. Em um ano já era o novo dono do morro, já tinha duas mulheres e um filho a caminho.

Viveu brincando de líder de comunidade marginal até que um dia decidiu que podia ser mais que aquilo, que queria ser legal. Fez supletivo e prestou concurso para a polícia. Era muito inteligente, se tivesse estudado em colégio de bacana, teriam descoberto que o QI dele era acima da média e sua capacidade mental muito além da maioria dos alunos das escolas ricas. Na polícia conseguiu subir rápido entregando toda a movimentação do tráfico no morro que ele mesmo criara. Como queria ser mais que soldado, continuou estudando, entrou para a faculdade, pois não sabia ser menos que chefe, e queria virar delegado. Chegou onde queria, como sempre em sua vida, conseguiu tudo o que queria, movido pelo ódio de nunca ter sido amado, passando por cima de tudo e todos para se provar importante, merecedor, capaz e temido. E assim levou toda sua vida, numa escalada de brutalidade e sucesso, sempre acompanhado, mas sempre solitário. De delegado galgou a político, pois há muito havia decidido que era a forma de poder maior que poderia alcançar. Em quinze anos de carreira já estava no parlamento de Brasília, trabalhando para chegar a senador.

Morreu como nasceu, velho e solitário, mas honrado, respeitado, com seu passado de bebê abandonado e traficante completamente apagados de seu currículo. Usou tudo e todos que podia para alcançar seus objetivos megalomaníacos. Sua esposa, amante e filhos todos muito sentidos com a perda do homem que temiam, mas não conheciam. Os jornais, televisões e rádios todos expressaram seu pesar com a morte de tão nobre servidor do povo, o político acima de qualquer julgamento, embora não tanto acima de qualquer suspeita.

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