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Duas Versões

Dois homens. Dois homens negros. Dois homens negros de bermuda preta. Atléticos, jovens, correndo. Dois homens parecidos, quase a mesma estatura, exatamente a mesma cor, mais ou menos a mesma idade, fazendo a mesma coisa: correndo.

Um deles corre pela vida, pela saúde, pela vaidade, para se manter saudável, para se manter atlético, para se manter atraente. Por causa da cor, por causa do preconceito, já foi até parado durante uma de suas sessões de exercício, porque ninguém pode ver um preto correndo sem pensar que está correndo de alguém.

O outro também corre pela vida, pela sua saúde, para não ser pego, não ser preso, não ser espancado. Sua cor denota sua origem, sua origem alimenta o preconceito, e por causa dele muitos outros pretos quando correm são confundidos, como no caso do primeiro homem.

Agora um corre do outro. Um homem preto jovem e atlético de short preto assaltou outro homem preto jovem e atlético de short preto. O assaltante correu e atrás dele correu o assaltado, que no momento do assalto também corria, despreocupado, desatento, descuidado, para longe do estereótipo do homem negro correndo de alguém. Um passou atrás do outro, o estereótipo correndo de uma exceção.

Dois homens, duas realidades, tantas semelhanças, mas tão diferentes. E nas diferenças buscamos as razões para o abismo que existe entre os dois, tanta distância do mundo de um para o do outro. A condição financeira, a criação, a existência de uma família, caráter, drogas, falta de oportunidades. Qual deles teve mãe e pai, qual deles foi amado, qual deles foi educado. O primeiro somente? Quem sabe não ambos?

E finalmente o homem negro de short preto pegou o outro homem negro de short preto, e no acesso de raiva pela a violência sofrida antes com a violação do seu direito, o assaltado jogou o assaltante no chão, e também com muita violência o espancou. Tanto, e com tal brutalidade que os espectadores estupefatos gritaram pela integridade do assaltante. E enquanto batia, o assaltado gritava – “Eu trabalho para ter minhas coisas, eu trabalho, eu trabalho” – confessando assim que se reconhecia no outro homem, indignado pela ação que reforça o estereótipo que ele tanto luta, e corre, para escapar.

Comentários

Leitores do Mira disse…
Lindo texto, querida.
Muitas saudades.
Bj
Adriana (Pilar)

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