Iria completar 10 anos e queria de presente um passeio pela Mesbla para comprar roupas novas. Só isso. Era pedir demais? Nem queria festa, só as roupas, mas umas dez peças, pelo menos. Já tinha pronta a lista. Seu pequeno núcleo familiar, composto dela, sua mãe, seu pai e o cachorro, viviam isolados do restante da família, mas as reuniões nos fins de ano ajudavam a realçar a diferença social em que se encontravam. Uma diferença que na verdade era apenas denotada por causa do arroubo intelectual prepotente do seu pai e dos delírios artísticos de sua mãe, mas de fato, seus primos tinham até mais fartura. Ou seja, viviam em um status intelectual e social não condizente com sua realidade, moravam na praia enquanto o restante da família era de Minas Gerais. Falavam inglês, liam livros, mas só, o nível era o mesmo. Essa era a idéia que teria de sua família e de seus pais, até o dia do seu décimo aniversário. Neste dia, ela recebeu um presente que iria mudar seu conceito para sempre.
Chegou o dia do aniversário, não estavam em casa, estavam em outro estado, na casa do irmão do pai. Ela acordou, e antes mesmo de se levantar, olhou para a mãe: - Mãe, que horas vamos à Mesbla? – ao que a mãe respondeu: - Não sei, minha filha, você tem que perguntar para seu pai. Ela se levantou correndo, e de pijamas mesmo foi procurar o pai na cozinha, que estava conversando com o irmão. Sem pedir licença, repetiu a pergunta, ao qual o pai não respondeu, apenas gralhou: - O que é isso, minha filha, não vê que estou conversando com seu tio? Vá mudar de roupa e venha tomar café. A menina saiu correndo, não queria desagradar ao pai, não naquele dia, queria muito ir comprar suas roupinhas, era só no que pensava.
Tomou o café e tornou a fazer a pergunta. O pai desconversou. E assim foi por toda aquela manhã, uma espera angustiada, sem confirmação, que a levou ao desespero ao ponto de começar a chorar. Seu pai apenas ria e não confirmava se iria ou não realizar o desejo de aniversário. Parecia se divertir com seu desespero. Até que chegou ao momento em que já soluçava, e finalmente, seu pai avisou que iriam sair. Ela parou de chorar no mesmo instante e correu para se arrumar. Ainda não estava segura se iria fazer as compras, ou não, mas pelo menos iriam sair, restava uma esperança. A sensação que percorria seu pequeno corpinho era que era a criança mais desafortunada do mundo, pois não teria festa, não estava perto dos amiguinhos, e nem o presente que havia escolhido iria ganhar.
Saíram, em direção à cidade, caminho para a Mesbla. Andaram vinte minutos em silêncio, quando seu pai falou: - Filha, eu vou te levar à Mesbla, mas antes, vamos passar por um lugar. Quero te mostrar uma coisa. Rodaram pelas ruas da cidade adentro, para bairros que ela não reconhecia. Foram saindo da cidade e aos poucos a paisagem dos prédios foram sendo substituídas por casas, cada vez mais simples, até que viraram casebres, até que enfim chegaram à uma favela. Foi então que seu pai finalmente falou: Filha, você agora vai conhecer a realidade de crianças que têm muito pouco. Papai quer que você veja como nosso mundo é desigual e o quanto você é abençoada.
E começou o desfile. Sem saírem do carro, por uma estrada de barro, o carro transitava bem devagar, na periferia da favela plana, que para dentro se perdia no horizonte. A estrada não era a passarela, era a platéia, parecia ter sido construída somente para que passassem de longe e vislumbrassem tamanha miséria exposta à exibição, sem que tivessem que adentrar aquele mundo paralelo. A visão foi estarrecedora, as lágrimas da menina secaram, seu queixo caiu. Uma vergonha percorreu todo seu saudável e bem suprido corpo, tão diferente daquelas crianças esquálidas e foscas que brincavam em cima do lixo, com seus porcos e urubus de estimação. Passaram dos casebres surrealistas que se sustentavam sobre o lixo para os de palafita sobre o mangue poluído pelo esgoto dos bairros mais abastados. Esse foi seu primeiro contato com a realidade. Filha única, apesar de não ser tão mimada, era acostumada a ter tudo a sua volta. Seus pais não lhe davam nada de graça, tudo tinha que ser negociado e conquistado, mas mesmo assim, tinham conforto e supérfluos.
E assim foi uma de suas tantas lições e aprendizados que hoje a define. Assim foi que finalmente entendeu como sua educação era diferenciada, e como descobriu que realmente era afortunada. Não por ter melhores condições, mas por ter pais que se preocupavam demais com sua educação acadêmica e com a formação do seu caráter. Mas era criança, de lá seguiram para a Mesbla e ela comprou sua listinha.
Comentários