Você está na santidade do seu lar totalmente relaxado, ou na maior concentração possível, se o seu caso é igual ao meu e você trabalha em casa. Todas as tarefas cumpridas, casa arrumada, contas pagas, filhos alimentados, banhados e graças a Deus já encaminhados para a escola. É só você e você, nem a empregada está mais e você tem as próximas duas horas exclusivas para seu próprio uso fruto. São duas horas inteirinhas só para você. Para trabalhar, ler um livro, ver um filme, tirar uma soneca, tomar um banho comprido, sei lá, o que for do gosto de cada um, qualquer coisa ou coisa nenhuma, o importante é que nesse momento não há compromissos além dos seus próprios.
Aí toca o telefone...
Uma voz indecisa, que não sabe se quer irritante ou suplicante, já no primeiro momento dá a dica do que se trata. Meu primeiro ímpeto é imitar o som da secretária eletrônica e fingir ser uma gravação, mas nunca tenho a coragem. Preciso dar o benefício da dúvida e pelo menos entender do que se trata, apesar de invariavelmente já saber que se trata de pedido de doação para lar de assistência a criança ou idoso. Mas a única caridade que até hoje me predispus foi realmente ouvir todo o discurso da pessoa do outro lado da linha e dar a ele, ou ela, uns minutos de trabalho que compensem o salário. Pensando bem, será que eles ganham para isso?
Em média essas ligações duram em torno de quinze a vinte minutos, mas teve um atendente mais insistente que me segurou por mais que isso e no final precisei ser incisiva. Incisiva assim tipo grossa mesmo. Ultimamente tenho ficado admirada com a criatividade das ligações, obras de renome estão sendo representadas. Uma vez disse que ia verificar o site da instituição e pedi para me ligar depois. Não é que ligaram? Fiquei até sem graça, porque no momento que desliguei a primeira ligação já havia me esquecido da minha promessa, não verifiquei site nenhum, não tinha a menor intenção de doar. Já faço algumas caridades para instituições que freqüento e prefiro fazer pessoalmente, mas preciso confessar, essas ultimas ligações têm mexido comigo.
Outra tática de guerrilha que eles têm apresentado é pedir a doação para uma pessoa específica. Um lar de idosos de Vargem Grande acabou de receber o Sr. Antônio, 85 anos, que está imobilizado por causa de Alzheimer e precisa de fraldas geriátricas. Uma casa de assistência de Campo Grande está desde Domingo passado cuidando de Gustavo, um bebê com Síndrome de Down que precisa de recursos para cuidados básicos. Me senti mal de não poder ajudar ao Sr. Antônio e ao Gus. Fiquei pensando neles passando necessidades e dependentes de outros estranhos que os ajudem a levar uma vida ao menos digna.
E pronto, lá se vão as minhas horas de folga, me debatendo com a pena por pessoas necessitadas e a raiva por talvez estar sendo enganada por uma quadrilha de estelionato e golpes financeiros. Estou torcendo para estar enganada, e orando pelo Sr. Antônio e pelo Gustavo. Quanto às ligações, continuo atendendo, um dia ainda vou visitar uma dessas instituições para ver com meus próprios olhos e acabar com minhas dúvidas. Ao menos consegui transformá-las nesta crônica. Quem sabe não consigo algum esclarecimento a partir disso.
Comentários