A tarde estava gostosa. A primavera adiantava um pouco do seu calor e colorido, aquecendo o dia com um sol cavalheiro, vigoroso e respeitador. No quintal da casa, o extenso pomar convidava para um passeio por entre as diversas árvores e arbustos. Embaixo das árvores, podia-se sentir uma brisa constante, agradável, que apesar do vigor do sol, lembrava que ainda era inverno. E este ar gelado, perfumado pelas frutas cítricas que pendiam das árvores, refrescava o sol, a pele, os pulmões e o pensamento de Pipa.
Ela caminhava devagar por entre as árvores, fazendo questão de passar as mãos nos troncos de todas pelas quais passava, sentindo sua forma e sua aspereza, provocando sensações de cócegas nos dedos. E aos poucos ia distanciando-se, muda, deixando seu corpo relaxar do almoço e do alvoroço daquele encontro familiar. Já fazia mais de dez anos que não visitava o sítio dos avós, palco de seus momentos mais felizes de infância.
Foi justamente naquele sítio, aos sete anos de idade, que ganhou o apelido que viraria praticamente seu nome principal. Em tardes muito parecidas com aquela, brincava com seu melhor amigo durante as férias, o filho do caseiro. Tião era dois anos mais velho, conhecia o sítio melhor que ninguém, e conhecia também as melhores brincadeiras. Era seu único, mas também o melhor companheiro que poderia querer durante os três meses anuais que passava no sítio, e durante esse período, eram inseparáveis, até dormir e comer na casa principal Tião fazia, para não perderem um minuto sequer separados.
E assim foi, dos sete aos doze anos, até que no verão que ela completaria treze, ao retornar ao sítio, ansiosa pelas férias e para rever o amigo, teve a notícia decepcionante que Tião havia se mudado para outra cidade, a mando do avô dela, para estudar. Ela ficou muito feliz pelo amigo estar tendo aquele presente, a escola agrária que Tião frequentara até os quinze era muito precária, e ele era uma criança muito curiosa e vivaz, com sede de conhecimento, merecia uma bolsa de estudo.
Pipa passou aquele verão todo sozinha, pois Tião tinha muito o que estudar para alcançar a turma do colégio particular que iria frequentar. Revoltada, já com hormônios aflorando a rebeldia, acusou ao avô de ser preconceituoso e tentar separá-la do amigo, apenas por ele ser empregado, filho do caseiro, humilde e negro. Mal sabia Pipa que desde o verão passado, quando ela ainda estava com doze anos, e Tião já completara quatorze, que seu avô já tinha reparado e concluído que aquela amizade de infância poderia se tornar um forte primeiro amor de adolescente, e acabar em conseqüências no mínimo desaconselháveis. E para evitar problemas, resolveu alavancar as oportunidades do menino, que era para ele como um neto, e, ainda que com pesar soubesse que causaria tristeza à neta, também fornecer a ela uma melhor opção para o futuro.
Em acordo com o avô estavam os pais de Pipa. Quando ela voltou para casa aquele verão, uma surpresa a aguardava. Ela iria estudar fora nos próximos anos, iria fazer intercâmbio, fazer todo o seu segundo grau fora do país. Como o avô havia reparado, Pipa estava já mesmo irremediavelmente apaixonada por Tião. Considerou toda manobra um ato maquiavélico, e jurou nunca mais voltar ao sítio. Foi resoluta fazer o intercâmbio, e como era adolescente, logo fez amizades e decidiu ficar mais um ano. Acabou ficando todo segundo grau e emendou em uma faculdade. Somente quando se formou voltou para a casa dos pais, para umas férias, antes de começar a trabalhar. Ficaria seis meses e depois voltaria para o exterior, onde já tinha um cargo a sua espera. Com os anos passaram a mágoa e brotou a saudade dos avós, do sítio, da família e da infância. Tião era uma história antiga em sua memória, nada restara da potencial paixão tão temida por seus avós e pais.
E agora, quase dez anos depois, estava de volta, em um almoço de comemoração por seu retorno. E estava de volta ao pomar, palco de tardes preguiçosas onde ela e Tião se refastelavam do almoço, pegando nos pés de frutas a sobremesa, se preparando para mais uma tarde de brincadeiras. Riu sozinha dos meses em que passou zangada com o avô e os pais, pois agora adulta compreendia os motivos deles. Estava sentada na sombra de uma mangueira quando a voz de um homem chamou seu nome. Com um breve susto que a tirou da lembrança antiga, se virou rápida para o local de onde saíra a voz. Um vulto grande de homem forte e estava de pé à sua frente, escurecido pelo sol, mas ela já tinha certeza de quem era, quando ouviu seu apelido Pipa.
Sem entender porque, Pipa estava com o coração acelerado. Ficou alguns segundos sem reação, até que uma mão se estendeu para ajudá-la a se levantar. Do chão foi direto ao encontro do corpo dele, para um abraço apertado que tentava apagar quase dez anos de distância forçada. Ele também estava formado, morando ainda na capital, já trabalhando. Ele também estava muito feliz em reencontrá-la. Passaram mais de três horas caminhando pelo sítio contando um ao outro tudo o que tinha vivido durante o tempo em que estiveram separados, compreendendo a inocência da amizade que tiveram, e com o silêncio acatando como acertada o movimento de separação promovido pelo avô dela. Ambos estavam sozinhos, e Pipa tinha a certeza que, assim como ela, a distância, o tempo e o reencontro inesperado os colocava agora novamente exatamente onde haviam parado, descobrindo o amor que já sentiam um pelo outro desde crianças.
Mas nada agora podia separá-los. Sem querer o avô havia fornecido a ambos a oportunidade que precisavam. Ele foi educado e agora era independente, tinha uma situação financeira cômoda e estava em pé de igualdade com ela. Ela cresceu longe da sociedade tacanha e interesseira dos amigos dos pais, teve uma educação liberal e estava livre e pronta para seguir o caminho que desejasse. Até naquele dia o avô ajudava a reuni-los, tendo inventado uma desculpa ridícula para arrastar o ocupado Antônio, não mais simplesmente Tião, até o sítio, no mesmo dia em que ela estaria de volta.
De longe, o avô, abraçado à avó de Pipa, observava orgulhoso o resultado de suas armações. A avó de Pipa comentava que havia sido arriscado, mas ao que parecia, o plano iria dar certo. Acontece que desde aquele longínquo verão, o avô de Pipa sabia que a única coisa que ele podia fazer para que a neta pudesse viver sua paixão de infância era separá-los naquele momento, para que Tião não ficasse tão aquém de Pipa, preso ao trabalho do pai para resto de sua vida, e para que Pipa não crescesse se achando superior ao filho do empregado da família. Educar Tião era o que ele melhor podia fazer pela neta, mesmo que isso custasse a separação temporária dos amigos de infância. Com uma resposta pragmática e sábia de um homem da terra, o avô de Pipa abraçou sua esposa e disse: paixão de infância não se desgasta, só tentei melhorar as chances dos dois, agora é dar um jeito dos bisnetos virem logo.
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