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Mensagem no Celular

Quarta-feira, sete horas da manhã, tocou o despertador na rádio preferida deles. Estela não teve coragem de abrir os olhos. Suspirou fundo ao perceber, quase dois minutos depois, que ainda aguardava pelo abraço costumeiro e o beijo de bom dia usual. Não viriam mais. Quis que estivesse acordando de um pesadelo, mas sabia que o pesadelo começaria quando ela se levantasse. Ao invés disso, jogou o despertador contra a parede e continuou por mais uma hora na cama, de olhos fechados, chorando em silencio. Estela estava decidida a não acreditar que o mundo, a vida, o trabalho e tudo mais continuaria depois da partida de Luiz. Seu único alento era acreditar na eternidade da alma. Seu conforto que se ele partira era porque já havia cumprido sua missão nesse planeta, portanto não morrera, apenas evoluíra. Sua única esperança que ela também partisse em seguida, a seu encontro. Mas toda sua fé não a havia preparado para ir depois dele, nunca vislumbrou viver sem seu grande e único amor, simplesmente não sabia mais como respirar, andar, se vestir, enfim, existir. Eles haviam se tornado apêndices vitais um do outro.


Mas a vida é trabalho, precisa ser vivida nos seus mínimos pormenores, e não para, nunca para. Portanto às oito e quinze chegou Margarida, a empregada, e sem saber do desejo de sua patroa, começou a atender ao telefone, que não parava de chamar. Bem treinada, apenas anotou os recados, explicando que a patroa ainda estava no quarto e se recusando a ir acordá-la. Na cama, Estela fechou mais os olhos, na tentativa de se isolar de vez dos sons, cheiros e banalidades do dia a dia dos vivos. Não que quisesse morrer, não acreditava em suicídio, apenas queria parar de existir por alguns momentos. Sua prece foi ouvida, e como não estivesse agindo com a melhor atitude, mensageiros divinos trataram de enviar alguém para tirá-la daquele torpor que ela bem sabia não estar certo. Sua mãe chegou para arrombar a porta do quarto e abrir as cortinas. Margarida nunca iria se opor à Don’Ana, os mensageiros não poderiam ter enviado alguém melhor.


Sem tratar diretamente do assunto, Don’Ana foi trazendo para dentro do quarto a luz, a normalidade e um pouco de força para Estela. Conseguiu fazer com que ela engatasse a primeira e desse início a sua nova vida, sem Luiz, sem vida, sem luz. E assim foi, durante quase um mês. Estela só saía da cama arrancada. Para isso Don’Ana havia se mudado temporariamente para o apartamento da filha, preocupada que estava com sua apatia. Mas Estela reagia, já tinha mais cor, já tinha quase até sorrido. E tinha finalmente conseguido forças para arrumar as coisas de Luiz. Se desfez de tudo, não queria objetos, apenas lembranças vívidas. Guardou as fotos, os vídeos e a última gravação que ele havia deixado em seu celular, a qual ouvia pelo menos umas dez vezes antes de adormecer chorando. Passado o mês que havia tirado de férias para se recuperar, a dor um pouco mais aplacada, a vida normalizada, esta foi a única mania que Estela manteve. Carregava o celular para onde ia, não o usava mais para outras ligações, com medo de apagar a mensagem, mas o mantinha sempre consigo, ouvindo de vez em quando a mensagem que dizia que ele estava entrando no avião e que logo, logo estariam juntos, que ele estava morrendo de saudades e que a amava muito.

Como dizem, o tempo cura tudo. E o tempo passa rápido. Porém, somente quem já teve uma grande perda sabe que na verdade o tempo não cura, apenas nos faz acostumar com o vazio e a conviver com a dor, e para isso, o tempo é lento, lento, muito devagar. Assim, passados quase um ano de normalidade, Estela seguia sua vida, já acordando sem Don’Ana, que havia voltado para sua própria casa, trabalhando, comendo, indo à academia, saindo para jantar com amigos, rindo no cinema, comprando roupas, ficando resfriada, fazendo tudo o que fazemos no dia a dia e nem nos apercebemos. O único hábito que manteve, religioso e secreto, era continuar com o antigo telefone celular junto a ela em todos os momentos, todos os lugares, ouvindo a mensagem todas as vezes que a saudade apertava, todas as noites antes de dormir, se perguntando quando finalmente estariam juntos novamente.


Numa certa manhã, Estela acordou diferente. Ia completar um ano da partida de Luiz no dia seguinte e Estela tinha, de todas as maneiras, tentado esquecer a data, fazê-la passar despercebida, mas seu subconsciente não deixara. Contudo, ao contrário do que havia imaginado, naquela véspera ela estava estranhamente feliz. Orou em agradecimento e saiu ao encontro de seus compromissos do dia. O dia transcorreu tranquilamente, sua mãe ligou umas três vezes para checar como estava a filha, o que até divertiu Estela, pois o dia passou e ela continuou no estranho estado de alegria. Estava tão animada que resolveu ir para casa caminhando, para sentir o vento no rosto e ver as pessoas na rua. Na metade do caminho começou a pensar em Luiz, mas não ficou triste, continuou com a sensação quente e confortável que estava no peito desde a manhã. Riu para si de sua mania de ouvir a mensagem e decidiu que já era hora de parar com aquilo, deixar Luiz descansar. Como para se despedir, resolveu ouvir a mensagem mais uma vez. Pegou o telefone, ligou para a caixa de mensagens e estarreceu no meio da calçada.


Estela não estava compreendendo. A mensagem era outra! Ela estava ficando louca? Ouviu repetidamente a mensagem para se assegurar. A mesma voz de sempre, seguramente a voz de Luiz, inconfundível, dizia que finalmente eles iriam se ver novamente, para ela não ter medo, tudo ficaria bem e logo eles estariam juntos. Estela andava de um lado para o outro da calçada, chorando, falando sozinha, imaginando quem poderia ter feito uma brincadeira de mau gosto daquela, se recusando a acreditar que aquela era uma mensagem do além, alguma resposta racional deveria haver para aquilo. Enquanto estava perdida em seu desespero e choque, dois garotos de rua passaram correndo, um arrancando a bolsa dos braços de Estela, o outro o celular.


Em um segundo Estela pensou: o celular! E não pensou mais. Saiu correndo desesperada atrás do garoto que estava com o aparelho. Correu com todas suas forças, como uma velocista, sem nem sequer se desesperar, pois nem sequer vislumbrava a alternativa de não alcançá-lo. Finalmente o menino chegou à beira de uma via de alto tráfego, e titubeou por alguns segundos se corria por entre os carros que passavam em alta velocidade, ou se corria calçada acima, desviando dos milhares de pedestres que abarrotavam o caminho. Achou que a madame roubada nunca teria coragem de atravessar aquela via, apesar de estar correndo muito bem para uma madame, e tentou o asfalto. No meio da pista Estela o alcançou, grudou em seu calção e arrancou o celular das mãos dele. Com um safanão ele se desvencilhou e ia seguir correndo, mas paralisou diante da buzina estridente do ônibus que se aproximava dele sem piedade. Estela não pensou duas vezes, se jogou contra o pivete, o empurrando com força para a calçada. Ele caiu de cabeça, mas se levantou em seguida, correndo sem olhar para trás, com medo de ser preso, sem sequer agradecer à madame que acabara de salvar sua vida, e que agora jazia espalhada no asfalto, morta instantaneamente pelo choque com o ônibus, com o celular intacto em uma das mãos. Finalmente, Estela e Luiz estariam juntos novamente.

Comentários

Anônimo disse…
Estela te amo. Luiz

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