Acordou com ressaca moral, porque sabia que não iria cumprir o compromisso agendado há quinze dias. Não entendia bem porque, mas tinha certeza que era capaz quando aceitou o projeto – o projeto que iria mudar a vida dele, sua grande chance finalmente – mas agora o prazo estava acabando e não tinha feito sequer um terço do que precisava para entregar naquele dia. Era necessário escrever trinta páginas, um resumo, ou um argumento como é melhor compreendido dentro do mundo dos roteiristas. Ele tinha os personagens, eram magníficos, mas os personagens estavam perdidos, sem sentido, não sabiam bem o que tinham que fazer. A história não estava ainda enredada, era apenas uma idéia, e não forte o suficiente para vender o argumento e transformar-se em um filme. E ele precisava entregar algo que fosse irrecusável, genial, inédito e inovador.
Mas agora não tinha mais tempo para preciosidades. Uma frase ocorreu em sua mente antes treinada para o mundo executivo: o ótimo é inimigo do bom! Ele odiava essa frase, achava que era a desculpa da mediocridade, era para aqueles que não tinham a capacidade de realizar o ótimo e se contentavam com o bom, o mediano, o comum. Agora, no desespero, ele entendia que se pelo menos honrasse o compromisso, mesmo que não gostassem tanto do seu argumento, poderiam dá-lo outra chance para melhorar ou escrever outro. E isso era bom, isso era melhor que nada, isso não era medíocre, nem comum, era responsabilidade. Mas acontece que sonhando com o ótimo e com os louros que ele colheria com o ótimo, se esqueceu de começar e por isso não tinha nem acabado com o bom. “Maldita filosofia empresarial da produtividade!”
Quando recebeu e aceitou a proposta foi comemorar. Agora percebia a heresia. Aquele não tinha sido o momento de comemorar, mas de se concentrar, se preocupar, ser pessimista, ser caxias, cdf, rígido, disciplinado e tudo o mais que ele, como artista, julgava limitador. E compreendeu finalmente que sua visão do que é ser artista estava mal formulada. O artista tem a idéia, mas ele só será considerado artista realmente se conseguir dar vida à sua idéia, senão, não passará de um louco criativo prolífico sem sucesso. O artista completo, o artista realizado, tem a idéia e depois a determinação de trabalho para dar vida à sua idéia, de por a mão na massa, na tinta, de usar o músculo em prol do cérebro, de transformar a inspiração em transpiração, de cansar a mente e o corpo, para finalmente fazer da sua idéia uma obra concreta, algo que não fique somente vagando em sua mente como um lampejo espetacular, mas que tenha a força de atingir quem se deparar com ela, a obra, e transformar o mundo ao redor, servir de fonte de inspiração, ensinar, demonstrar, entreter, divertir, gerar especulações, críticas, opiniões, ou seja, interagir com o meio, com o público, porque toda obra e todo artista querem ser públicos, querem ser admirados.
Mas agora, com o prazo ali, a sua frente, já não se importava mais se era ótima ou apenas boa a sua idéia, queria entregar e cumprir seu compromisso. Sentou-se ainda de pijama de frente para o computador, pegou uma garrafa de leite gelado e tomou direto do gargalo, não quis perder tempo fazendo café, e começou a trabalhar. Abriu seu arquivo de idéias, textos iniciados, alguns apenas com o título, e nunca terminados. Resolveu misturar tudo, pois precisava de volume, e precisava daquilo rápido. E conseguiu. Não dá pra dizer que é a melhor história que já havia escrito em sua vida, mas foi o melhor que conseguiu fazer em um dia. Chorou muito durante o processo, pois a auto-estima lhe chicoteava na cara a falta de disciplina que o levara àquele gesto desesperado para cumprir tão mediocremente com um prazo e pelo menos não sujar seu nome na praça. Poderia estar perdendo a chance de sua vida, caso recusassem o argumento, mas pelo menos não seria tido como enrolado e furão.
E quando finalmente terminou, chorou mais um pouco, pois já estava apaixonado por sua própria história, e tinha medo de estar desperdiçando um bom argumento por falta de tempo para torná-lo melhor. De novo a frase assombrou seu pensamento – ótimo é inimigo do bom, entrega assim mesmo! Fez uma última revisão e enviou o email, ainda com uma hora de antecedência. Voltou pra cama, se cobriu todo e decidiu que dormiria dois dias seguidos, até ter forças para se encarar e encarar o email com a resposta. Fez diversas promessas que nunca mais iria deixar nada para a última hora, que iria entrar na academia para ter resistência física, que iria ter horário, disciplina, que voltaria para a dieta, pararia de fumar, faria tudo o que ele sabia que era certo, muito chato, mas o certo, o correto, para se tornar uma pessoa produtiva e eficiente, pois de nada lhe valia o lampejo artístico se não soubesse como canalizá-lo e transformá-lo em realização concreta.
Mas antes mesmo que pudesse adormecer, enquanto ainda fazia as orações pedindo perdão e as juras de melhoria na atitude, ouviu o barulhinho do email entrando em sua caixa postal. Já haviam se passado três horas desde que enviara o argumento, não era possível que já houvessem avaliado o material dele. Mas haviam! Estavam aguardando ansiosos, pois estavam com muita urgência, e foi muito importante ele ter mantido o prazo, apesar deles saberem que artistas costumam atrasar entregas, porque agora nem iriam considerar outros argumentos que estavam aguardando. Tinham gostado do dele e iriam dar prosseguimento ao contrato, pois tinham urgência no projeto. Deveriam se encontrar já no dia seguinte, na primeira hora, para discutir prazos e valores. Ele deu um pulo para fora do pijama e para dentro do chuveiro, ligou alto o som, raspou a barba de duas semanas, e saiu para comemorar, já se esquecendo de todas as juras e promessas feitas durante o desespero. Afinal, ele era um artista, havia conseguido escrever um argumento de mais de trinta páginas em apenas oito horas de trabalho, por pura genialidade e inspiração. E isso não era bom, era ótimo!
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