Ela havia inventado uma nova brincadeira. Ela gostava de inventar brincadeiras, desde criancinha, sempre inventava uma nova forma de interação, um novo desafio, uma aventura inédita. Uma vez havia raptado o cachorro da amiguinha e colocado todas as crianças do bairro para procurar, quem achasse ganharia um prêmio. A amiguinha não gostou muito, mas toda a vizinhança se envolveu na busca. Acharam o cachorrinho no dia seguinte, desesperado de fome e susto, preso dentro de um quarto de uma casa abandonada. Sua mãe precisou prometer a mãe da outra menininha, dona do cachorrinho, que estava inconsolável desde o dia anterior que sua filha nunca mais se aproximaria da casa deles.
Era muito inventiva, mas tinha um gosto exacerbado pelo risco, não media as conseqüências. Na adolescência, quem quase morreu foi ela própria. Já tinha a fama de inventiva e maluquinha, portanto não atendiam mais a todos os seus chamados, gritos de socorro, bilhetes de resgate ou qualquer outro truque imaginativo digno de um filme hitchcockiano. No meio de uma festa, fingiu desmaiar e cair na piscina, permanecendo no fundo e aguardando que alguém a tirasse de lá. Como ninguém estava a fim de desmanchar a maquiagem nem molhar o terno no meio de uma festa de debutante, ela ficou imersa sem respirar por quase três minutos. Um dos garçons da festa, que não a conhecia, se compadeceu e se jogou na piscina para retirá-la já desmaiada.
A mãe a fez jurar que não colocaria nem a vida dela nem a de mais ninguém, nem a de mais nada que fosse em risco, e lhe deu dez diários. Sob ameaças sérias de todos os tipos, pediu, implorou, que a filha lançasse nos cadernos toda a sua imaginação, e parasse com as brincadeiras de mau gosto. A princípio ela achou um pouco tedioso, mas depois encontrou uma maneira de atender a mãe e mesmo assim continuar “experimentando”. Começou a escrever suas idéias nos cadernos em forma de diário, como se tudo o que escrevesse tivesse realmente acontecido, e gostou da brincadeira. Passou a elaborar o passado e a personalidade dos personagens, para dar mais vida e mais veracidade às história. Nos primeiros meses escrevia freneticamente e ia guardando os falsos diários. Depois decidiu que o melhor seria que alguém os lesse. Mas não podia ser qualquer um, não podia ser alguém que a conhecesse e soubesse que se tratava de apenas histórias inventadas. Foi quando teve a brilhante idéia de começar a “esquecer” os diários em locais públicos para depois seguir quem os encontrasse.
No princípio foi um pouco decepcionante, demoraram a pegar os diários, porque as pessoas andavam muito desconfiadas, não ousavam tocar em qualquer objeto largado na rua, por medo de doença, macumba, bomba ou coisa pior. Decidiu que precisava fazer uma encenação antes de esquecer o caderno onde quer que fosse. E assim foi que no metrô ela fingiu falar animadamente com alguém pelo celular contando como havia sido sua fantástica noite anterior, e contando que tinha escrito todos os detalhes sórdidos em seu diário, e fingia folhear o diário rindo das situações. Depois saiu do vagão, deixando o caderno no banco ao seu lado. Foi o primeiro que pegaram, mas levaram três dias para retornar para o telefone e o nome falso que ela havia inscrito como identificação. Este primeiro quem pegou era um homem no princípio de seus quarenta, engravatado, com cara de sério, talvez um advogado ou outra coisa assim. Ele ligou para avisar sobre o diário e aproveitou para convidá-la para sair. Ela aceitou, e marcou direto no motel, não sem antes fazer uma denúncia anônima. Ele a pegou alguns metros antes e foram para o motel, mas antes de entrar no quarto a polícia o prendeu por corrupção de menores. A mãe a deixou de castigo por mais de 30 dias, e depois contratou uma babá-segurança para acompanhá-la em todos os locais que ela fosse.
Ela aguardou a maioridade e a faculdade para voltar a agir com liberdade. Escolheu um curso qualquer que não tivesse em sua cidade e foi morar sozinha. Arrumou um emprego, porque era inteligente e muito bem preparada, e passou a se sustentar. E voltou a ação. Foi a um restaurante carérrimo, muito chique e exclusivo e pediu mesa para um. Pediu uma água e um vinho e começou a chorar incessantemente, enquanto escrevia sem parar no diário. Uma mulher muito elegante, nos seus cinqüenta quase imperceptíveis, passou a observá-la com atenção. Antes que a mulher fosse lhe oferecer amparo, ela jogou umas notas de dinheiro na mesa e saiu correndo do restaurante, deixando seu diário sobre a mesa. A mulher a ligou quase que imediatamente, mas como ela queria que a mulher primeiro lesse o diário, não atendeu, decidiu aguardar até o dia seguinte. No dia seguinte ela retornou e marcaram de se encontrar. A mulher a deu uma grande quantia de dinheiro para ajudá-la com a gravidez indesejada que ela havia contraída porque tinha sido estuprada pelo cunhado, mas ofereceu ajuda também caso ela quisesse desmascarar o bandido. Ela aceitou o dinheiro, agradeceu e sumiu. Divertiu-se por mais de um mês com o sucesso do segundo diário, e foi ganhando coragem para mais histórias.
E foi pregando golpes, sempre se arriscando atrás da emoção de fazer outras pessoas viverem suas vidas inventadas, cada vez arriscando-se mais, cada vez mais longe da realidade, cada vez mais elaborada. Decidiu testar a biblioteca da faculdade. Todos os dias durante mais de dois meses, passava o dia inteiro na biblioteca lendo jornais, fazendo pesquisas e escrevendo metodicamente em seu mais novo diário, até que um belo dia percebeu que havia fisgado mais uma vítima. Há mais de duas semanas um funcionário da biblioteca a observava mais atentamente, sempre rondando, tentando ver o que ela estava pesquisando, oferecendo-se para pegar mais livros, mas ela sempre fazendo mistério, para atiçar a curiosidade dele. Finalmente havia chegado o dia de deixar o diário para ele pegar. Ela encenou que estava correndo, com um semblante muito preocupado, como se estivesse fugindo, mas dessa vez, ao invés de esquecer o caderno, entregou-o em mãos ao funcionário que a observava a dias, dizendo que a vida dela corria perigo, e caso alguma coisa acontecesse com ela, que ele entregasse o diário a polícia.
Mas quem foi que disse que a vida também não prega peças na gente? Dessa vez, quem foi surpreendida foi ela, pois estava há dias escrevendo uma história paralela a uma investigação criminal verídica sobre um assassino em série que assolava a redondeza. O que ela não sabia é que o funcionário da biblioteca, com aquela cara pacata e entediante, já havia há muito percebido o material no qual ela estava tão interessada. Já havia muito que o funcionário da biblioteca, o verdadeiro assassino, a seguia, com medo de que ela estivesse descobrindo algo, que era exatamente o que ela descrevia no diário, com descrições que coincidiam com o modus operandi do assassino e com a realidade. Acontece que as vezes a realidade é até mais surreal que a própria ficção, e no dia seguinte ela foi se encontrar com o assassino, que assustado com a possibilidade de ser pego, decidiu que ela seria sua última vítima. Dele nunca mais ouviram falar, sumiu. Ela apareceu morta uma semana depois boiando no rio próximo ao campus da faculdade. Sua mãe não quis abrir inquérito, pois tinha certeza que tinha sido resultado de mais uma de suas brincadeiras.
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