Ainda fico chocada quando ouço algum comentário preconceituoso. Não consigo compreender como no meio de tanta informação e diversidade ainda haja espaço para o preconceito, o separatismo, a prepotência da superioridade de uma raça sobre a outra. Não podemos supor a origem ou a predestinação de nada nem ninguém pela aparência, mas esse preconceito existe, infelizmente, e vai além da aparência.
Alguns tipos de preconceitos já estão tão arraigados em nossa cultura que já viraram termos comuns de expressão do racismo que temos arraigados e nem sequer percebemos. Por exemplo cabelo ruim como expressão de cabelo crespo. Por que ruim? Ruim em relação a qual outro, o liso? Porque é o liso com o qual nos acostumamos depois de séculos de propaganda estética da classe dominante? Porque o liso é o predominante nas cabeças dos que escravizavam negros de cabelos crespos? Ora, olhemos pela ótica da biologia, da etnia, o crespo nada mais é que a adaptação evolutiva do cabelo para uma raça que habitou determinada região do planeta de condições climáticas inóspitas, com pouca umidade e muito sol. Se formos analisar, o cabelo crespo é ainda mais fino que o mais liso dos lisos, tão fino que sua programação genética o fez se enrolar intrinsecamente para que pudesse assim proteger o couro cabeludo dos raios do sol forte da região onde tal raça inicialmente habitou. Mas o preconceito ainda hoje nos faz chamar de ruim algo que simplesmente se trata de uma determinação evolutiva, de um diferencial. O cabelo crespo não é pior que o cabelo liso, só é diferente, não é ruim, é crespo.
Outra expressão muito usada e que expressa muito bem o tipo de preconceito que temos entranhado é a famosa “serviço de preto” para criticar quando algum trabalho foi realizado de forma desleixada e com defeitos. Há alguns anos ouvi uma música de uma banda independente do interior de São Paulo fazendo um trocadilho com essa expressão para criticar o preconceito embutido nela. A música se chamava (se me lembro bem, infelizmente esqueci o nome da banda) “Serviço de Negro” e ressaltava a importância do trabalho do escravo para a formação do Brasil, invertendo com inteligência e poesia a intenção da expressão, fazendo uma crítica ao nosso pensamento programado, algumas vezes até ingenuamente expressado, sem se dar conta da carga de preconceito com a qual está carregado. Assim como essa expressão, tantas outras, que nos surpreendemos falando ao longo do dia, ou ouvimos de quem menos esperamos, tais como: só podia ser, olha a pele, na entrada ou na saída, e assim vai.
E não nos atemos somente à questão étnica, o preconceito vai além. Também se resvala pelas áreas geográficas e sociais, entre outras, como nos exemplos dos cearenses, paraíbas, cabeças chatas, ou qualquer imigrante nordestino que habita, popula, alimenta, diverte e enriquece a cultura já tão misturada do sul maravilha, e assim são alcunhados e transformados em uma classe social distinta e menos privilegiada. Ser nordestino, descendente de nordestino, ou simplesmente ter as características genéticas que uma época passada caracterizou o biotipo das pessoas nascidas nessa região desse Brasil tão eclético e tão grande, tornou-se sinônimo de profissão e classe social. Por causa da frequência, tem shopping que ganhou apelido de shopping dos paraíbas, porque não sei qual camada social decidiu que pessoas que não moram na Zona Sul carioca e tem menor poder aquisitivo vieram todos deste estado do nordeste do país. E o pior é que entre essa camada que se julga dominante acha graça em fazer graça com algo tão feio e tão sério quanto o preconceito. Qual é a graça na cultura e no pensamento separatista que acabou levando a catástrofes e genocídios como o Apartheid e o Nazismo?
Cheguei a conclusão que levar esse preconceito velado e aparentemente inofensivo na brincadeira e com irresponsabilidade pode a princípio parecer apenas uma característica da personalidade alegre e brincalhona do Brasileiro, mas é também essa característica que acaba nos levando à outro vício tão feio, tão noscivo e tão vergonhoso quanto o preconceito, a corrupção, o pensamento corrupto, a idéia de fazer o certo só se for obrigado, se houver penalidade, se alguém estiver observando, caso contrário, que mal tem? Esse é o mal que assola todos nós, mais silencioso e mais nocivo que o câncer, está tão entranhado que muitas vezes nem o percebemos mais. Que problema tem cruzar um sinal fechado se não tem nenhum carro atravessando? Que mal tem eu levar uma vantagenzinha aqui, afinal meu primo trabalha no fórum, pode me ajudar a adiantar meu processo? E outras atitudes similares, menores ou maiores, são a base do pensamento corrupto, porque enquanto somos apenas um tirando essa vantagenzinha que não vai machucar ninguém, o movimento toma proporções gigantescas uma vez que nos damos conta que somos cento e noventa milhões de brasileiros, todos tentando tirar alguma vantagem de algum lugar ou de alguém. E quando essa atitude alcança esferas maiores, o estrago também é maior, porque o político que desvia dinheiro de merenda está tirando a comida da boca de uma criança. Ou o partido que não repassa verba da saúde, também é responsável pela morte de crianças, jovens e idosos que não receberam atendimento por falta de médico, de hospital, de remédio ou atendimento, sem falar nos acidentes nas estradas, na poluição, na destruição das matas, entre outras mazelas causadas pela corrupção dos dirigentes eleitos.
Para acabar com o preconceito em larga escala ou com a corrupção desenfreada e homicida, precisamos retroceder e ficarmos mais inocentes. Achacar o pensamento preconceituoso e corrupto em suas bases. Nos tornarmos mais piegas, menos cínicos, menos egoístas e mais literais. É fazer o certo porque é o certo a se fazer, não porque podemos ser penalizados se alguém nos flagrar no ato, mas porque é assim que toda uma sociedade vai se beneficiar. É achar feio a piada que denigre uma raça, uma classe, um gênero ou uma etnia. Repudiar o impulso de se aproveitar inapropriadamente de qualquer instância ou grau de benefício pessoal. Parece difícil, e é, mas é a única solução, mudarmos nós mesmos e tentar ensinar as novas gerações. Talvez assim, em cinquenta ou menos anos, consigamos melhorar alguma coisa por aqui.
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