Eu queria ser sem vergonha. Ou ter menos vergonha, pelo menos. Ter coragem de falar o que vier à minha mente na hora que vier. Não é não ter papas na língua, mas fazer o processamento antes, aplicar boas doses de diplomacia e expressar, de preferência, sempre com muito bom humor, o que estiver pensando, no momento que estiver pensando. Não quero ser sem vergonha para “dizer verdades”, criticar ou machucar ninguém. Minha avó já dizia muito bem: “se não é para falar bem, fique calada”; Gertrude Stein também dizia mais ou menos a mesma coisa: “se não for para escrever sobre coisas belas, não escreva.” Eu queria ser sem vergonha para contribuir para a melhoria do mundo, do meu mundo pessoal.
Por exemplo: em uma das minhas deliciosas aventuras de ônibus pelas ruas do Rio – aliás, trafegar por esta cidade, seja a pé, de ônibus, de carro, de táxi ou de metrô é sempre uma aventura maravilhosa; de bicicleta então, é quase esporte radical, pura adrenalina – pois ia eu em um desses ônibus com motorista que pensa que está na Formula Um quando um rapaz muito altruísta resolveu nos agraciar com o som do seu radinho. Desculpem-me, é a idade, é claro que não era radinho, ninguém com menos de sessenta usa radinho, era o próprio celular multitarefa do passageiro, meu companheiro de aventuras. Tenho certeza que a intenção dele era a das melhores, pretendia nos acalmar colocando uma música ambiente para nos distrair das escapadas mortais que presenciávamos no trânsito lá fora.
O problema, no entanto, infelizmente, é que, assim como nosso pára-choque traseiro tão único, nosso DNA brasileiro, ou seja, assim como a bunda, o gosto musical do generoso e distinto passageiro não combinava com o meu, acho que com o de ninguém, haja visto os olhares tortos que ele recebia. E como sempre, nossos ouvidos têm uma hipersensibilidade para aquele tipo de música que não nos agrada, elas sempre soam muito altas, altas demais, insuportavelmente altas. Fiquei impressionada com a potência de som do celular do jovem aspirante a DJ, quase lhe perguntei a marca do aparelho, pois estou precisando trocar minhas caixas de som, então esta seria uma alternativa boa a talvez até mais barata. Mas voltando à história, sei que depois de dois minutos comecei a sentir uma dor na barriga que me deixou preocupada, logo pensando em descer do ônibus desgovernado. Mas a dor na barriga subiu pelo esôfago, arranhou minha garganta com um jato de bílis, explodiu na minha cabeça como uma bomba e vazou quente pelos meus ouvidos. Logo entendi, não era disenteria, o surdo sem noção estava ouvindo pagode.
Se você for fã de pagode, por favor, não pare de ler ainda. Não me leve a mal, eu até gosto do Zeca Pagodinho e outros músicos desta mesma estirpe, mas é que não conheço outro termo para músicas melosas tocadas por uma dúzia de percursionistas, um órgão eletrônico e um cantor fanho. Era isto que estava tocando no celular-radinho: um arranjo simplório de quatro acordes e rimas óbvias sobre algum tipo de dor de cotovelo. Em um churrasco com cerveja até vai, fica lindo, até canto se tiver karaokê (melhor que seja muita cerveja com caipirinha). Mas naquele momento, que bem podiam ser os últimos instantes da minha vida, eu queria ouvir uma trilha sonora mais apropriada. Não precisava ser o Réquiem de Mozart ou a Nossa Senhora de Roberto Carlos, mas qualquer musiquinha mais sofisticada era melhor que aquilo. Aliás, nem precisava ser música, eu queria poder ouvir minha própria oração pedindo proteção contra a direção assassina do digníssimo motorista. Mas eis que apesar de toda minha revolta e desconforto, a vergonha me travou, e é por isso que estou aqui a lhes forçar este texto. Minha desculpa pelo incômodo que agora provoco é que texto é silencioso e você já poderia ter parado de ler se estivesse te causando dores ou hemorragias. Se não parou até agora, muito obrigada e minhas sinceras desculpas. Prometo acabar no próximo parágrafo. E será mais curto que este, lhe garanto.
Então cheguei à questão do meu título e introdução. Fosse eu mais sem vergonha, poderia, com bom humor e diplomacia, ter iniciado a seguinte conversação que elaborei durante o resto do trajeto para tentar me distrair do motorista psicopata e da música torturante. Acho que meu agraciador sonoro não teria nem como responder, pois imaginei o resto dos passageiros me aplaudindo. Se não tivesse tanta vergonha, teria lhe dito: “Por favor, coloca na rádio MEC.” Ao que o dono do celular me olharia surpreso e eu completaria: “o senhor não é o DJ do ônibus? Eu quero ouvir música clássica.” Aí, se ele falasse qualquer coisa, eu responderia “então se a música é só para o senhor, coloque fones de ouvidos, porque não paguei couvert artístico, só a passagem do ônibus!” Pronto, não ia ser perfeito? Mas e a minha vergonha deixou? Claro que não. Engoli (e ouvi) a música chata até o final da viagem, com o único benefício de agora ter um tema para a crônica de hoje. Por isso, a minha mais nova resolução de ano novo, apesar de estarmos em Outubro, é que quero ser sem vergonha e expressar minhas opiniões no momento em que elas aflorarem. E vou começar pelo porco dono do cachorro cagão do prédio vizinho. Amanhã vou me plantar de pá e vassourinha em frente ao parquinho e esperar por ele. Estou pensando até em fazer uns cartazes.
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