Mau Humor Octogenário
Acordar e me arrumar! Arrumar coragem. Encarar tudo de novo, mas nada é novo, tudo é velho, eu sou velho, me sinto velho. Os filhos estão criados, mas os problemas continuam, agora há os netos. Estou aposentado, mas ainda trabalho e me preocupo com vencimentos e compromissos. Estou cansado. Acordar, trabalhar, dormir. E ter que acordar de novo. É cansativo. Todo dia, tudo de novo.
Para quem já viveu tanto, nada é novidade, e o que é interessante, é apenas mais uma novidade. Até isso já se desgastou: a freqüência com que as novidades vêm e ficam, e envelhecem, como tudo mais. E por que viver tanto, quantos pecados ainda tenho em débito que precise viver tanto? Se estou durando assim, devo ser vaso ruim, até hoje não quebrei.
Você que é novo deve pensar: quanta desesperança! Mas não tente julgar quando ainda não completou meio século de vida. Somente após os sessenta talvez possa começar a compreender, quando finalmente se der conta que uma de suas maiores alegrias será fazer suas necessidades sem dores ou complicações. A vida se resume a isso, ter um sistema fisiológico ainda operativo. E os prazeres agora são todos proibidos, mortais, sentenças de morte.
Pois quero todas! Quero ter uma embolia de tanto comer feijoada e tomar cerveja, quero uma isquemia por excesso de uísque, quero um câncer só para poder fumar um bom charuto, quero uma trombose de tanto dançar na gafieira, quero uma diabete para poder me empanturrar de doces, quero um ataque de coração para poder fazer amor depois do almoço com aquela mocinha da esquina. Não quero morte lenta nem silenciosa, quero sair dessa vida fazendo barulho, pelo menos uma vez nessa vida, quero ser o centro das atenções de um espetáculo mórbido e barulhento. E que me perdoem os parentes, até eles já se cansaram dos meus oitenta anos, e agora, quem quer dar trabalho sou eu.
Bom Humor Octogenário
Acordar e me arrumar! Tornou-se uma das maiores das minhas muitas alegrias. Mais uma vez o sol amarelo e quentinho, ou mesmo a chuva fazendo carinho nas árvores, não importa o clima, meu coração quase expulsa o Stent de tanto alegria de ver mais um dia. Coloco um dos meus muitos chapéus coloridos e vou caminhar. Poderia encarar a recomendação médica como uma obrigação, mas aproveito para usar como uma desculpa para ser minha primeira ação do dia: ir passear entre as árvores que enquadram a paisagem, ver as pessoas e os carros passando apressados e eu passando em câmera lenta, degustando cada segundo e admirando a pulsação ao meu redor. Se está calor, me refresco com uma água de côco geladinha; se está chovendo, deixo a chuva molhar meu rosto, só um pouquinho, para sentir a indizível sensação do contato da água com minha pele, confirmando a delícia que é estar mais um dia aqui.
A família cresceu, chegaram os netos, a vida continua, o ciclo se repete, os problemas já estão velhos e não assustam mais, já fazem parte do sistema. O mais importante é que continuamos todos juntos, todos tão diferentes, mas todos atados por um sentimento visceral de que a família não se escolhe, apenas se ama, sem razão nem porquê. Todos os dias alguém me dá de presente uma visita, um sorriso, uma fofoca. Curto tudo como se fosse o néctar dos meus dias, e minha principal ocupação. Recebo as notícias de um mundo novo, que me deixa maravilhada e perplexa pela realização de milagres tecnológicos que, quando garotinha, lia nos livros de ficção científica.
Tudo o que aprendi, o que sei hoje, vou levar comigo. A única herança que quero deixar é minha alegria. Não vou dizer aos mais jovens que aproveitem o que têm agora, seria clichê demais. Que cada um viva suas próprias experiências, pois elas são únicas e não podem ser transferidas. Espero que cometam todos os erros e excessos que tiverem oportunidade, que vivam intensamente, que corram enquanto tiverem pernas, que amem muito enquanto tiverem fôlego, e que sofram também, pois faz parte do processo e ajuda a valorizar a felicidade, que descobri, ainda cedo, ainda bem, está nas menores coisas dessa benção chamada vida.
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