Milonga Miaperta e Mileva Daqui
Quinta-feira em Buenos Aires, dezoito deliciosos graus aquecidos com vinho no café, no almoço e no lanche da tarde, havia chegado a hora de sacudir o tanino numa noitada tipicamente portenha. Nada de show lasveguiano de malabaristas imitando tangueiros. Queríamos a realidade, a verdadeira arte de los hermanos. Não queríamos confiar no duvidoso guia escrito em inglês, então fomos perguntar aos nem tão simpáticos recepcionistas do nosso hotel. Estava confirmado o programa da noite: Grán Salón Canning, a milonga mais tradicional de Buenos Aires. E para lá fomos, ávidos e curiosos. Talvez até arriscássemos uns passinhos.
No caminho, o motorista do táxi nos alertou para a possibilidade de estar fechado. Gelei! Estava com muita expectativa sobre a famosa milonga. A corrida já estava demorando demais, mas finalmente chegamos. Logo vi uma grande porta dupla de metal, ao que exclamei: está fechada? Não, aquela não era a entrada, mas sim uma pequena porta seguida de um corredor comprido, logo ao lado. Ah, bom! Pagamos e descemos. Atravessamos e entramos no corredor. No meio deste, outra porta, e no alto, bem acima uma pequena placa onde mal se podia ler o nome do estabelecimento, mas era ele mesmo. No final do segundo corredor um pequeno guarda-casacos e finalmente a terceira porta que abria para um grande salão de taco de madeira, com mesas dispostas em volta, muito claro para um salão de dança, a meu ver. Depois compreendi que um dos grandes baratos das milongas é poder ver os outros casais dançando. Antes um pouco, na entrada desta terceira porta, algumas pessoas estavam reunidas fumando no corredor, e entre elas, a recepcionista. Estava instituído o clima informal e bem familiar onde clientes se misturavam aos funcionários do local. Mais tarde percebi que quase todos já se conheciam pelos nomes. A faixa etária média era de cinqüenta anos. Ok, não teríamos balada, mas era verdadeiramente uma casa argentina, os únicos turistas invasores éramos nós.
Entramos e ficamos alguns minutos em pé, tentando decidir o que fazer, mas logo veio um rapaz nos seus trinta e poucos anos nos recepcionar. Nos encaminhou a uma mesa com uma boa vista para o salão e nos deu a boa notícia, naquela noite teriam a apresentação de dois casais campeões de tango. Oba! O show estava garantido. Enquanto sentávamos alguns casais dançavam. Eu logo comecei a procurar por instrutores que pudessem dançar comigo, caso meu marido se recusasse a se arriscar no salão. Não encontrei. Então parti para apreciar aos casais que dançavam. Vários estilos, várias idades, vários tamanhos. Havia uma jovem que aparentava estar na casa dos vinte que só dançava com um senhor para lá dos sessenta. Pai e filha, talvez? Ou não! Claramente se via que ele a estava ensinando. Outros casais trocavam entre si de parceiros, a expressão geral era de prazer absoluto, e a maioria fechava os olhos ao dançar. As mulheres se movimentavam em câmera lenta, com gestos suaves e ondulados, leves e delicadas, com expressões dramáticas nos rostos, não só dançavam, interpretavam. Os homens, garbosos, no estilo tão antigo quanto ao do termo, convidavam às mulheres para a próxima dança com sutis olhares ao longe, e de repente ambos se levantam de cada lado do salão e se encontravam no meio do caminho sem trocar nenhuma palavra, às vezes nem mesmo após o término de cada dança.
O nosso recepcionista, mestre de cerimônias, dançarino, garçom e sei lá mais o quê do lugar anunciou o primeiro casal de campeões a se apresentar. Eram da Colômbia. Se encaminharam para o meio do salão, um de cada lado e esperaram até que o DJ aprendesse a operar o equipamento e colocasse a música certa. Alguns minutos se passaram, nosso faz tudo foi ajudar e pronto, começou o show. Dançaram duas músicas (o DJ se atrapalhou de novo para colocar a segunda música). Comecei a perturbar meu marido, pela milésima vez, para entrarmos na aula de dança, ele mais uma vez me enrolou, dizendo que sim, mas sabendo que não. Não importa, não desisto nunca, mas ameacei, então vou dançar com outros, e começamos a velha discussão que temos a respeito do brasileiro forró: para ele, nem pensar, pois a dança é muito íntima, e só pode ser entre casais; para mim, isso é preconceito, e quando se dança não tem maldade, se faz pelo gosto à dança. Meu marido começou a apontar para os casais, tentando me convencer que rolava muita intimidade, mãos apertadas nas costas, quase tocando os seios do outro lado, por trás; rostos juntos com bocas quase encostando, beijos fáceis; movimentos dos quadris sedutores e inflamáveis. E eu refutando tudo, indignada.
Mas até essa discussão estava divertida, ríamos soltos enquanto apreciávamos aos casais, inventando histórias para cada um deles, cada um defendendo seu ponto de vista. Num determinado momento, nosso coringa começou a apresentar convidados presentes que eram milongueiros de outras regiões da Argentina, quase a metade do quórum. Depois o segundo casal se apresentou, jovens e asiáticos, ela com longos cílios postiços e um enorme rabo de cavalo, magra como toda asiática, demonstrou grande habilidade e passos audaciosos. O show foi lindo, mas os casais normais estavam mais divertidos. E quando o baile recomeçou, uma coroa loira bonitona, que já havia dançado com todos os outros cavalheiros do baile, foi dançar pela primeira vez com um senhor alto, esguio e charmoso, que havia sido apresentado como milongueiro da região de Córdoba e que estava acompanhado de sua esposa. O senhor charmoso e a coroa bonitona formaram um belo par, e dançaram muito, riram muito, dançaram mais, tanto que comecei a ficar preocupada, mas não mencionei nada. A sintonia dos dois estava tão latente que meu disfarce não serviu para nada, logo meu marido apontou: viu, não disse, olha aí, está rolando um clima. E era verdade, não era mais um clima, já se anunciava uma tempestade. Logo imaginei uma cena típica de tango, com briga de ciúmes no meio do salão. Mas a esposa dançava tranquilamente com cavalheiros diferentes, indiferente e ao que parece, cega. Ela também fechava os olhos ao dançar, e pelo jeito, quando não estava dançando os mantinha fechados. Eu já teria tirado meu marido a tapas do salão, mas não podia perder a pose e tentei minimizar enquanto meu marido repetia: eu não disse, eu te disse, disse sim! Enfim, minha hipótese foi por água abaixo e imediatamente voltei a insistir nas aulas.
Para coroar a noite, fomos solicitar à recepcionista que nos chamasse um táxi. Ela nos disse que no salão estava um motorista e que ele nos levaria. Perfeito, não? Comecei a pensar se em Buenos Aires tinha Lei Seca. Meu marido me lançou o desafio de adivinhar quem era o motorista. Olhei para o salão e analisei os cavalheiros que dançavam. A coroa bonitona e o senhor charmoso continuavam o namoro, com certeza não era ele. Me deparei então com um jovem senhor, no princípio dos seus quarenta anos, as costas retas como o encosto de um assento, a calça levemente caída no meio da bunda, de tanto ficar sentado, a barriga baixa e curvada para caber embaixo do volante, e um ritmo levemente adiantado, típico dos apressados taxistas que ganham pelo taxímetro não me deixaram dúvida, aquele seria nosso motorista, e Deus nos amparasse. Apontei minha escolha e pedi que fôssemos chamar outro táxi, mas meu marido estava curioso. A música acabou, fomos para a porta, e o meu escolhido confirmou minha hipótese. Era ele mesmo. Pelo menos iríamos conversar sobre tango durante o caminho.
Apesar do nosso guia americano haver recomendado, meu marido estava disposto a correr o risco de pegar um taxi informal, tudo em prol da investigação turística, para ele era mais uma aventura. Saímos e seguimos nosso motorista, Daniel, pela calçada. Logo avistei um Rádio Táxi estacionado, ufa, pensei, não está tão mal, mas Daniel parou em um carro antes, um velho Fiesta, talvez para pegar um documento, pensei com esperança, que logo desabou quando ele nos abriu a porta, que só abria por dentro, como ele gentilmente explicou. E lá fomos nós, meu marido conversando com Daniel e eu, dura de preocupação, como só as mulheres ficam. E para não deixar vocês preocupados também, adianto que chegamos bem, são e salvos, com a carteira ilesa ao hotel. Ao longo do trajeto, meu marido quis confirmar com Daniel sua teoria de que dançar era arriscado para a saúde do relacionamento e que só deveria ser feito entre casais. Daniel, para meu desgosto, defendeu ardentemente esta teoria, adicionando, para complicar, que suas últimas duas namoradas ele havia conquistado na pista. Pronto, fiquei fadada a nunca mais dançar, até que consiga fazer meu marido virar um Carlinhos de Jesus. No final, quando já estávamos em frente ao hotel, fora do carro, e eu finalmente voltei a respirar, Daniel agradeceu e gritou de dentro do velho Fiesta: les salve el casamento! ao que meu marido agradeceu: obrigada, Daniel. E ficou tão feliz com o apoio que durante o resto da viagem, só andamos com este simpático taxista, apesar dos meus protestos. De quebra ganhamos dele uns quinze CDs de tango e milonga, e pelo oquê sou eu que agradeço: obrigada, Daniel!
Comentários