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Mostrando postagens de 2012

Por Que Sou Tão Pacífica?

Preciso me revoltar! Indignar-me! Cerrar os punhos e chamar para a briga. Matar de vez a Pollyana que existe em mim. Mas aí vem o sol – esse bendito e maravilhoso sol – que aquece o corpo e refresca a mente. E para piorar, é primavera no Rio de Janeiro. É Rio de Janeiro, é sol, é brisa fresca do mar, enfim: quem é que consegue ficar revoltado num cenário assim?  Dá sede, bebo um coco. Budaquibariu! Quem foi que colocou adoçante nesse coco? E pronto, minha última gota de indignação vai por água de coco abaixo.  Alguém passa com o rádio ligado e nem me importo se está alto demais, pois a música inunda minha cena com a trilha sonora perfeita. Gil já sabia das coisas há muito tempo: isso aqui continua lindo. O sol, a brisa, a água de coco docinha, a música perfeita, o sorriso das razões do meu afeto, a união, a harmonia, o bom dia do estranho que deve estar tendo a mesma epifania, e pronto, está aí a razão, agora entendo, do brasileiro ser tão pacífico. Achamos que já es...

Grampos

No fundo da gaveta, um grampo! Como migalhas de pão indicando o caminho de casa, os grampos são uma pista de sua passagem, como sempre silenciosa, sem distúrbios, alardes ou propaganda.  Se me dissessem talvez não fosse para mim possível conceber uma existência assim, silenciosa. É como um sopro, um vento que só sopra se preciso, se chamado, trazendo alento, um frescor, um abraço, um braço de ajuda, às vezes dois, ou apenas uma comida, quando não se tem cabeça nem para providenciar o alimento necessário. Assim talvez como são os anjos: invisível, silenciosa, imprescindível.  E em cada grampo encontrado me lembro dela, de sua voz serena, aconselhando manso, não querendo invadir, sua presença aconchegante e sempre suave. E a cada grampo espalhado pela casa que encontro, único indício material de sua passagem, uma lembrança diferente, a de um carinho, de um momento de paciência, da ajuda desinteressada, da dedicação.  E em cada grampo sinto o cheiro de banho ...

Dois Pontos de Vista

Rafael estava todo sujo, molhado e com as roupas rasgadas. A menina havia enganado ele direitinho. Ela pediu carona e ele não pode resistir àquelas feições tão singelas. Agora Rafael se culpava por ter sido superficial e julgado o caráter da moça pela sua aparência. Mas como ele poderia imaginar que aquela menina de pouco mais de dezoito anos, pele alva, cabelos loiros, longos e bem tratados, jogados pra trás e seguros com um arco, vestido branco florido em cima dos joelhos, de mangas bufantes, largo e amarrado na cintura, pudesse ser uma assaltante. Como ele poderia adivinhar que detrás daquele arbusto iriam surgir seus dois comparsas, estes sim com crachás de ‘Assaltante Profissional’. E era assim, relembrando cada momento do assalto, desde o instante que parou para a falsa mocinha, a sensação da arma dura e fria em sua têmpora, o modo bruto como fora arrancado de dentro do carro, a surra que levou como ameaça para não dar queixa, as humilhações e o abandono naquela estrada vazia. ...

Elevador

Terno, gravata, tênis e capacete de moto. Um calor vulcânico fazia o suor escorrer como lava do cabelo para as costeletas démodé. Calça jeans apertada, camiseta branca decotada, All Star rosa choque, rabo de cavalo e capacete de bicicleta. A brisa da pedalada pela Lagoa refrescou a pele rosa e aveludada, como se lá fora fosse outono, não verão. Dentro do elevador o clima não era nem de calor, nem de frio, era de atração.  Um checou o outro, de cima a baixo, de baixo a cima. Na frente, quando ela entrou depois dele. Atrás, quando ela se virou para apertar o décimo quinto. E a porta se fechou e o elevador começou a subir, só com os dois, décimo quinto e dezessete. Para ela, pouco tempo para conhecê-lo. Para ele, tempo o suficiente para passar uma cantada, e um convite.  Ele limpou o suor e abriu a boca para falar. Ela se virou e disse “ok”. Ele sorriu da ousadia, e a testou. “Ok o quê?” Ela fez uma expressão mista de reprovação e provocação. “Pensei que motociclistas não g...

O Fim

E tudo terminou. É o Fim. O Fim com letra maiúscula. Acabou. A dor chegou, o sonho acabou, toda verdade virou mentira. Arrancaram o amor, cortaram com faca cega uma parte do coração, que agora sangra, sangra, dói, se esvai em lágrimas e arrependimentos. De tudo o que disse, que prometeu, que acreditou, que planejou, que não falou. E dói tanto que parece mesmo que o Fim na verdade é um começo, o início de uma penitência, de um castigo infernal. Não é possível vislumbrar que o Fim também tenha um fim, que um dia ele acabe, deixe de ser importante, e vire pedra de transposição. E quando mais a frente, bem longe desse Fim, lembrarmos tudo o que foi antes, durante e depois dele, acharemos graça dos exageros, saudades dos momentos felizes, e gratidão pelo o que foi e não foi, pelo o que deixou de ser. Porque no fim das contas, tudo chega ao fim, mesmo quando não acaba. A paquera passa, começa o namoro. Do namoro, se vingar, vem o noivado, do noivado o casamento, no casamento a lua de me...

Pesquisa Científica

Essa semana li uma reportagem que muito me alegrou o coração: “pipoca ajuda a combater o envelhecimento”! Fui correndo para a cozinha e preparei uma bacia enorme de pipoca na manteiga. Devo ter rejuvenescido uns três anos, pelo menos. Eu levava muito a sério essas pesquisas científicas, desde que elas não me fizessem levar a minha própria vida tão a sério. Só gostava daquelas que davam sabor e prazer ao meu dia a dia. A melhor de todas foi sobre a descoberta que álcool traz saúde e longevidade. Se for vinho então, melhor ainda. Levei a pesquisa tão a sério que um dia quase me tornei imortal, mas no dia seguinte a ressaca me mostrou direitinho a minha proximidade à morte.  Todas essas notícias sobre pesquisas de ponta são muito animadoras. Ontem mesmo, por exemplo, li sobre uma pesquisa que fizeram com mais de mil pessoas e determinaram que dentre essas, as mais magras comiam mais chocolate. Maravilha! Logo pensei, e aproveitei para pegar a barra que estava escondida no fundo da g...

O Mundo Encolheu

O mundo é tão grande quanto a nossa ignorância. Quando jovens, sentimos como se ele fosse infinito, sabemos tão pouco e imaginamos tudo grandioso. Os pais, os amigos, os amores, tudo à nossa volta, são sempre os melhores e maiores. Mas conforme crescemos, experimentamos e aprendemos, as fronteiras e os espaços por elas delimitados vão se estreitando. O mundo começa a encolher.   Já nos anos 90, o ano 2000 parecia uma data longínqua que guardava o fim do mundo por causa de um bichinho que ia infestar todos os computadores e acabar com a economia e a ordem mundial. Parecia uma data que não ia chegar nunca. O filme 2001 – Uma Odisséia no Espaço, vislumbrava um avanço tecnológico para o período que dava a sensação de que nem em cem anos alcançaríamos aquele nível de futurismo, fazendo o novo milênio parecer ainda mais distante, intangível. Hoje, passados mais de dez anos da data do título do romance e filme, o que parece mais improvável é como fomos capazes de viver nos anos 80 e 90 s...

Crise Existêncial

De repente ela se sentiu completamente obsoleta, como um guarda-chuva no verão. Lutara tanto para dar àquela casa um jeitão de lar, que agora como um organismo, funcionava muito bem sem ela. Bem papel de mãe mesmo. Doeu para conceber, para gestar, para parir, para criar e agora ninguém precisava dela. Tornara-se, de fato, obsoleta. Caiu em desuso, como uma língua morta, alguém ainda se lembrava dela, mas ninguém sabia para o que servia.  Tentou durante alguns anos reinventar-se. Fez cursos, tentou uma nova profissão, uma nova arte, inventou que iria escrever. A tudo tentado era recebida com risos descrentes e críticas adolescentes avassaladoras. Tornara-se ridícula, tinha que aceitar seu papel de quadro encardido esquecido na decoração, e que só não fora tirado fora para não expor a marca na parede. Até que um dia, uma desilusão amorosa, um fracasso profissional, uma revelação de identidade oculta, e de repente todos precisavam dela. Marido, filha, filho, até a nora. E ela, releg...

Poema de Mãe

E se eu não existisse? A vida seria tão importante? Haveria mar, sol, luz e noite? Seria tudo igual, nada mudaria? E se eu não fosse real, haveria dissonância na música? Racionalidade no poema, tristeza na infância? Se eu sou tão importante assim, Porque seu mundo não muda Quando eu me vou? Quando não estou, Por que não faço falta? Pois você pra mim faz! Tudo fica sem sabor. O ar sem cheiro, A flor sem cor, O amor não dói. Tudo fica um nada. Nada fica muito. Nem bom, nem ruim, Só fica o vazio. Assim...

Duas Versões

Dois homens. Dois homens negros. Dois homens negros de bermuda preta. Atléticos, jovens, correndo. Dois homens parecidos, quase a mesma estatura, exatamente a mesma cor, mais ou menos a mesma idade, fazendo a mesma coisa: correndo. Um deles corre pela vida, pela saúde, pela vaidade, para se manter saudável, para se manter atlético, para se manter atraente. Por causa da cor, por causa do preconceito, já foi até parado durante uma de suas sessões de exercício, porque ninguém pode ver um preto correndo sem pensar que está correndo de alguém. O outro também corre pela vida, pela sua saúde, para não ser pego, não ser preso, não ser espancado. Sua cor denota sua origem, sua origem alimenta o preconceito, e por causa dele muitos outros pretos quando correm são confundidos, como no caso do primeiro homem.

Hiato

Breve pausa, descanso. Ausência leve sem saudade. Folga na imagem. Recanto. Menos que separação. Mais que um dia. Mas merecida, necessária e consentida. Nesse hiato, reflexões, definições e decisões. Muitas revisões. Importantes realizações. Algum plano, uma ou duas divergências e várias trilhas em perspectivas. No fim, apenas uma certeza: amor. Na partida, na saída e como fim. No pensar, no agir, ao escrever e até no transgredir. Por que não? A maldade é inteligente, esperta, leva vantagem, precisa de coragem. Até para ser covarde. A crueldade, o cinismo, a dureza são fortes, todos com ares de intelectuais, inteligentes, sabem mais, se dão bem. O amor não. É patético, bobão, babão, piegas. Fraco, fraco. Sente pena, se identifica, se entrega, se mata para salvar. Morre. Na dicotomia, a dúvida. De ser, representar, pertencer. Falar do mau, falar mal, ser piegas ou romântico. A polêmica ou o lugar comum. No antagonismo, o encontro, a personalidade definida, o achado. Depois do hia...